
Inteligências da matéria
Tem sido cada vez mais escassos os ambientes em que, na dança, formas outras de comunicação são experimentadas. E quando se trata desse quesito, deve-se contar não apenas as investigações da própria linguagem, de modo que seja possível complexificar e expandir os entendimentos tacanhos do que se espera de um passo de dança; mas também, as configurações de formatos de compartilhamento de pesquisa e de apresentação. Nesse sentido, C A C O S, de Cristian Duarte em companhia, mostra-se como um conjunto de apresentações que cumpre com ambas as possibilidades de investigação de modos outros de se comunicar: rasga e coloca do avesso vocabulários coreográficos, além de insinuar arranjos expográficos da relação obra-público, e que convidam a fruição a se colocar também enquanto um pensamento.
Como de costume nos trabalhos de Cristian Duarte em companhia, C A C O S não se trata de uma novidade, mas de uma continuidade. A proposta, agora dentro do projeto Sempre Junto e Nunca Igual (contemplado pela 36ª edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura), segue o que já havia sido iniciado no projeto Kintsugi (contemplado pela 32ª edição do mesmo programa de fomento). Naquela ocasião, foram propostos quatro duetos e um trio com as e os artistas da companhia. Em 2025, foram propostas novas combinações: C A C O #2, Me Envenena, Vem Cá – um dueto com Gabriel Tolgyesi e Maurício Alves; C A C O #3, Bote – um dueto com Danielli Mendes e Leandro Berton; C A C O #4, Tudo Vira – um trio com Allyson Amaral, Andrea Rosa Sá e Felipe Stocco. Os C A C O S #1 e #5 estão ainda por sair.
C A C O #2, Me Envenena, Vem Cá
Memes são fixações no imaginário que, apesar de grudarem, também fazem mexer, fazem tremer. Eles colam imagens que, com o tempo, se distorcem e geram mosaicos deles próprios. A partir dessa remixagem, ao mesmo tempo que colocam o dedo no nostálgico, cutucam o ambíguo: ora fazem valer o sentido originário, ora ecoam uma polifonia - ou uma cacofonia?
Gabriel Tolgyesi e Maurício Alves nos chamam para nos envenenar: o veneno é o meme, que começa sedutor e atraente. É através da familiaridade e do reconhecimento que acontece o encantamento. Tomamos boas doses do veneno-meme, até que, já dopados, o efeito se efetiva. O riso é, nesse acontecimento, o resultado colateral dessa substância.
Em Me Envenena, Vem Cá, propositalmente – e, portanto, dramaturgicamente –, o familiar transforma-se em estranho; o reconhecível torna-se indistinguível; a melodia se distorce em barulho. São esses, afinal, os frutos colhidos da plantação de memes, plantação esta que, vale dizer, está infestada pela praga da banalização. Em Me Envenena, Vem Cá, dança-se a desvaloração dos valores. Tudo começa com um sentido, mas à medida que tudo e qualquer coisa vale e se equivale, nada mais vale.
Constrói-se a dança a partir de amontoados de blocos que, ao edificarem o excesso, mostram que tudo isso é um grande nada. Envenenando-nos com o demais, a peça coreográfica faz pensar sobre a nossa inabilidade de lidar com o vazio – este que é completamente diferente de um grande nada criado pela demasia.
O meme não cria continuidade, mas se mescla ao excesso e banaliza o seu próprio sentido. Me Envenena, Vem Cá, ao contrário, constrói uma trilha que, mais do que levar a algum lugar, convida a olhar para os passos desse caminho.
C A C O #3, Bote
Muito se espera de uma coreografia: que ela seja compassada, com precisão para que todos aqueles que estão nela desempenhem exatamente o mesmo desenho de movimento, dentro de um mesmo espaço de tempo. No entanto, pouco se espera que algo mais ousado e mais difícil de se lapidar seja almejado, a exemplo de uma sincronicidade que se dá não por aquilo que se apresenta como igual, mas por aquilo que só é possível de ser percebido se, de fato, dilatarmo-nos em direção ao jogo de presença estabelecido pelos movimentos dos corpos em cena. O Bote dançado por Danielli Mendes e Leandro Berton parte da premissa de uma “sabedoria anatômica, numa organização de vida e morte que será, e só poderá ser, numa fração de segundos” (conforme descrição no programa). Nesse sentido, a sincronicidade em questão traz à luz o que só pode ser vivido durante o tempo de vida da ação de um e o tempo de vida da ação do outro. É síncrono, portanto, porque é na impermanência que se pode desenvolver toda uma potência de congruência.
Em Bote, a inteligência do gesto, para além de estar presente na refinação de uma precisão ou nos encaixes rítmicos, evidencia-se também pela constante adaptação necessária para a própria sobrevivência do movimento. Em se tratando de uma peça coreográfica de dois, o que sustenta a latência não está apenas em um ou em outro, mas naquilo que atravessa simultaneamente o um e o outro. Assim como em um bote, é através da apreensão que se produz uma tensão. Por exemplo, diante de uma cena em que o predador está prestes a pegar a presa, gera-se (na presa, no predador e em um eventual observador) uma rede de contrações musculares. Talvez seja em momentos como esses – quando há uma iminência da morte –, em que a presentidade da vida se ative com mais vigor. Simular momentos assim não é algo simples. Por isso, novamente: enquanto observadores de uma peça de dança, faz-se fundamental deixar-nos ser atravessados por sincronicidades que, assim como em Bote, buscam uma qualidade outra de compasso, que ao invés de simplificar-se pela repetição e pelo igual, tenta cravar na jugular a atenção da ação.
C A C O #4, Tudo Vira
Não é alarme, nem é sirene, mas é uma composição que, ao pegar e fazer ritmo visual e sonoro, apita jogos na regra: propõe novas réguas para se medir as possibilidades de compassos e descompassos.
Allyson Amaral, Andrea Rosa Sá e Felipe Stocco, cada um em um canto próximo de alguém do público, já iniciam colocando o valor da medida: são os braços, com seus respectivos pesos, tamanhos e densidades, que se orquestram como os grandes vetores coreográficos deste C A C O.
Tudo Vira explora variações e ignições de port de bras. Os braços dão o tom de para onde o olho olha e o que o olho vê. Além disso, aquilo que se vê só é visto se combinado com a batida do som – o que evidencia que visão e audição se aliam através do inframince. Em outras palavras: percepção é cadeia. É no pequeno intervalo, seja de um gesto para outro, seja de uma nota para outra, que se abre uma multidão: uma multidão de relacionalidades, uma vastidão de conexões, potencialidades de combinações que partem da e tendem a garantir a continuidade da diversidade.
O som eletrotecno de Tudo Vira (a partir das composições: Archetypes: "The Rebel" de Clarice Assad | com Clarice, Sérgio Assad e Third Coast Percussion; e Ecco/Corri/Sempre/Verde/Fiamma, de Alessandro Contini) não poderia ser, portanto, uma simples trilha sonora, ou um mero fundo musical. Tudo é coreografia, porque tudo (se) move e faz mover. O som não é mensagem de/para algo, mas é constante massagem que arranca dos ouvidos-olhos as superfícies da pele.
Nesse sentido, Tudo Vira traz um valor importante e raro nos tempos atuais: propõe em quantidade e qualidade camadas de informações. A fruição sobre o trabalho, semelhantemente aos braços, braços e braços em cena, acontece através de cortes do tempo-espaço. Os movimentos lançam-se como lâminas afiadas, que nos rasgos que dão, fazem com que adentremos e vaguemos pelos montes de sólidos escupidos.
Esses três C A C O S de Cristian Duarte em companhia são verdadeiros ensaios de pensamentos. Eles testam vocabulários e gramáticas; experimentam possibilidades de exibição; brincam com os jogos de combinação. Em tempos tão duros, povoados também por pensamentos duros, a continuidade de pesquisas como a de C A C O S dá a chance e a esperança de que a inteligência compositiva consiga repovoar as nossas zonas fantasmas.