Saturação
Manter um compasso coreográfico não se limita, necessariamente, a estabelecer apenas um mesmo tom, com pausas e intensidades colocadas em um intervalo regular no espaço e no tempo da dança. Para além da regularidade, pode-se sustentar um compasso que se inicia com a repetição, mas que depois consegue criar graus de variação: varre-se para as arestas do espaço uma força que, ao ricochetear, provoca pequenos tornados naquilo que antes parecia o mesmo. Força Estranha, de Futura, com Clarice Lima e Aline Bonamin, começa enchendo a cena com um ritmo que, como elemento que fica e se transforma ao longo de toda a apresentação, transborda para dentro. Assim como acontecem com as correntes de ar em um local fechado, ou com as de água de um pequeno reservatório, em Força Estranha há também um tipo de movimento que vai movendo o volume criado pelo próprio trabalho.
É a partir dos momentos de revezamento logo no início, quando ou Aline ou Clarice entram em cena, que Força Estranha fornece o ritmo que permanece no espaço. As batidas do som juntam-se à intensão gerada no movimento, não sendo elas, portanto, as condutoras a priori das intencionalidades dos passos. Quando juntas, Clarice a Aline, respectivamente em azul e rosa, gestam uma espécie de cor roxa, que ao mesmo tempo que se fixa, se dissipa novamente nas cores originárias, mas agora com os resquícios da contaminação.
O som é também um passo quando, por exemplo, as mãos são batidas no chão, o que faz ecoar no ar a intensidade empregada naquela superfície. O eco da batida primeira permanece por um tempo, e se encontra com o da batida segunda, da terceira, da quarta... As camadas sobrepostas – entre cores, sons, luzes e movimentos – evidenciam, com isso, o traço coreográfico de Força Estranha no que diz respeito a uma espécie de saturação: busca-se preencher a dança com elementos que, ao invés de serem apenas dissolvidos pelo espaço-tempo, compõem um tipo de precipitado. São os montes, os ajuntados formados ao longo da performance, que ao insistirem na permanência, modificam continuamente os índices físico-químicos da composição.
Enquanto procedimento de criação de passos de dança, a saturação não provê uma forma dada, isto é, um desenho com traços reconhecíveis; mas uma série de alterações na viscosidade, na acidez e na transparência, bem como em mudanças em outros estados da matéria. Tais mudanças, por sua vez, afetam a constituição de todo o ambiente envolta, impulsionando movimentos em tudo e em todos que ali estão. O passo de dança em questão aciona uma qualidade de presença; desperta um tipo de atenção.
Além das cores, dos ritmos criados pelos movimentos e pelo som, há também outros elementos que contribuem para criar e revelar a saturação. Os feixes de luz que atravessam o espaço, por exemplo, fornecem novas informações, mas também disparam nas partículas já presentes outras conduções vetoriais. A fumaça que, já quase no final da apresentação, cobre a atmosfera, além de se fundar como mais um componente que se agrega à coreografia, passa a ser um dispositivo que ajuda a ver o que está sendo precipitado. Ou seja, é com o excesso de algo, neste caso a fumaça, que é possível desencobrir as tramas e camadas invisíveis que constituem um ambiente. Quase que paradoxalmente, em Força Estranha, é através da diminuição das taxas de acuidade – com o aumento da neblina ou com a redução da intensidade de luz – que se ativa uma qualidade outra no próprio gesto de ver.
A composição poderia ser comparada a esculturas, especificamente àquelas criadas pelo artista Mario Merz (1925-2003), que combinava elementos rústicos (como madeira e gravetos de árvores) com objetos modernos (como vidros translúcidos, espelhos e aço). Semelhantemente à obra de Merz, a escultura levantada por Força Estranha sobrepõe objetos a objetos, mas cria também feixes que são completados pela luz, pelo som e pelos fluxos gerados no contexto. Assim como no artista italiano, não se trata de uma escultura imóvel e enrijecida, e sim de um sistema suscetível às variações.
A condução da performance, a propósito, leva a uma construção que se assemelha aos iglus feitos por Merz, a exemplo da obra Claro-Escuro, Escuro-Claro (1983). No entanto, menos como um iglu, e mais como uma barraca de acampamento, a escultura alteada no fim de Força Estranha começa a ser alçada já desde quando a primeira nota abre a performance. A barraca, no fim e por fim, poderia ser um dos precipitados formados dentro daquela atmosfera.
No acampamento que é deixado, talvez Força Estranha esteja hasteando uma bandeira de/em um estado de sítio, que faz lembrar que os movimentos na/da dança podem ir além do reforço das obviedades. Fazer ver, mesmo o que aparentemente já está claro, requer que se chacoalhe o próprio excesso, a própria saturação, de modo que, ou o precipitado se dissolva para alterar a amostra, ou, pelo contrário, ele se mantenha, consolidando-se como um cristal que pode, em concomitância, absorver, propagar e transformar a energia de um lugar.