Oblíqua
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NOVOS TEMPOS

Massagens no olho que tudo vê: o que se aprende quando tudo se apreende?

Por: Rodrigo Monteiro
junho - 2023

Historicamente, as nossas experiências com produções artísticas e culturais nunca estiveram ilesas das transformações técnicas e sociais. Agora, no entanto, tais experiências parecem corroborar com um tipo de catástrofe, afundando-se e afundando-nos em um oceano de superficialidade. O comportamento atual de nossa fruição, viciado na impaciência e na falta de complexidade, vaza pelos poros da pele, exalando um discreto perfume de cinismo e de hipocrisia. Se não nos alertarmos e agirmos neste cenário, de modo a levar em consideração algumas massagens que estão sendo feitas em nossa percepção, a mensagem que os meios midiáticos continuarão comunicando será a seguinte: onde tudo parece ser verdade e toda ação parece ser efetiva, não resta mais nada a não ser encontrar o melhor ângulo e a luz mais adequada para tornar público tudo e qualquer coisa. Vale ressaltar, todavia, que aquilo que é tornado público deveria germinar, antes, nas camadas profundas do pensamento crítico – gesto que este texto tentou fazer antes de colocar-se no mundo.   

Indagar sobre arte e cultura nos tempos atuais implica também em questionar o modo como a criação e a fruição desses campos são atravessadas pelas transformações de nossa percepção e de nossa cognição. Diante de um cenário altamente configurado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação, a arte e a cultura não ficam imunes: ora podem aderir acriticamente a esse cenário, utilizando, por exemplo, os meios técnicos apenas como plataformas de divulgação; ora olham para essas ferramentas na tentativa de compreender e reconfigurar as lógicas que estão em jogo. O que acontece é que, mesmo quando supostamente utiliza-se um meio na intenção de ele ser um mecanismo neutro, que esticará e ampliará a comunicação, as funcionalidades inerentes a ele contaminam e transformam o conteúdo inicial. Contaminam e transformam, também, a nossa apreensão do objeto em questão. Não há comunicação neutra; não há, tampouco, meio técnico que não interfira no modo como percebemos e agimos no mundo. Apesar de não parecer, este texto, mesmo que de forma não direta, tem a intenção de se debruçar sobre arte e cultura, em especial sobre as transformações atuais nas formas de apreciá-las.  

Atravessamos uma época em que, nunca como antes, as tecnologias e as formas de comunicação têm se transformado de um modo galopante. A aceleração dessas mudanças está, ela mesma, acelerada. Um celular ou um computador não são descartados ou trocados porque não funcionam mais, mas porque, diante dos novos que são lançados praticamente a cada segundo, tornam-se obsoletos, supostamente lentos e fora de moda. Junto com os novos smartphones e computadores, mas também com os softwares e as redes de internet que vêm se sofisticando, os comportamentos individuais e sociais enveredam-se por estradas cuja velocidade máxima está descompensada, onde os altos pedágios afunilam e tornam cada vez mais raras as boas trocas intercomunicacionais.

Já dizia a máxima de Marshall McLuhan: “o meio é a mensagem”. Em um passado bastante recente, o rádio e a televisão não eram apenas os suportes por onde uma informação era veiculada, sem que ela fosse modificada a ponto de ser comunicada de modo neutro e chegasse até o receptor com as mesmas intenções do momento em que fora emitida. A comunicação, aliás, é um fenômeno muito mais complexo do que esquemas que mostram que entre um emissor e um receptor há apenas uma informação veiculada por um canal. Nesse processo há muito ruído, além das condições do ambiente que se mesclam com diversos fatores, e que afetam diretamente na constituição de uma mensagem. Novamente com McLuhan: o meio é também a massagem. 

As formas de comunicação de cada tempo são, elas próprias, mensagens de ideias, valores, modos de comportamento e de conduta. São também massagens que modificam nosso tônus perceptivo e muscular, o modo como nos enxergamos diante do mundo e a maneira como nos relacionamos uns com os outros. 

Provavelmente, daqui a uns quinze ou vinte anos, quando as crianças e adolescentes de nossa época se tornarem adultos, eles não se lembrarão mais de que, um dia, os telefones celulares serviram para que as pessoas falassem umas com as outras através apenas do uso da voz – aliás, há muitos adultos desta nossa geração que já se esqueceram disso. Houve uma era em que se expectava por um futuro em que conseguiríamos conversar com alguém distante através de um tubo, desses de televisores antigos, no qual também conseguiríamos ver a pessoa, para além de simplesmente ouvir a voz dela. Pois bem, este futuro chegou e, certamente, essa imagem de um tubo de televisão antiga se atualizou, junto com os softwares e os componentes tecnológicos que permitem não apenas a comunicação remota de vídeo e som, como também a interação interpessoal através de ferramentas nunca outrora imaginadas. 

Afinal, o que será que estava em jogo nessa imaginação de trinta, quarenta anos atrás, quando a internet era ainda algo quase que exclusivo de grandes empresas de tecnologia ou, antes disso, de usos militares? Será que se almejava um mundo em que, semelhante ao dos Jetsons, a diminuição das distâncias através das telas seria sinônimo de um progresso alcançado? Talvez, as mentes imaginativas desse passado não tão distante tivessem, de fato, muitas boas intenções na concepção e na confecção de instrumentos que estenderiam uma capacidade tão cara ao ser humano, que é a de se comunicar. No entanto, provavelmente, aquelas mentes de boa fé se esqueceram de que há, também, as mentes com outras fés: as que acreditam que os gestos de falar, ouvir, gesticular e se expressar são, no fim, apenas o meio do caminho para se alcançar aquilo que se quer. E foram essas, e não as primeiras mentes, que, de algum modo, começaram a dominar o mundo. 

A comunicação como fenômeno social é, do ponto de vista econômico e do mercado, um case fenomenal. Nem precisamos ir muito longe para constatar esse sucesso. Basta olharmos ao redor para ver a quantidade de pessoas interagindo através de aplicativos e de redes sociais; ou para a avassaladora quantidade de mensagens, fotos, vídeos, likes e compartilhamentos de conteúdo que às vezes uma única pessoa produz por dia. São as famosas bigtechs – conglomerados de empresas que detêm a maior fatia do capital financeiro mundial –, através de altos investimentos em tecnologias digitais e de comunicação, que têm dado o tom de nossos hábitos e de nosso comportamento contemporâneo. Os produtos gerados e vendidos por essas empresas, sejam eles produtos palpáveis, como computadores ou celulares, sejam os impalpáveis, como inteligências artificiais e algoritmos, são responsáveis não apenas pela circulação de capital monetário, como também pela produção de imaginários – isto é, por formas de representação do mundo que constituem as nossas subjetividades, estas que nos guiam em relação às ações e decisões cotidianas. Circulação de capital monetário e criação de imaginário não são, aliás, campos apartados, sobretudo em tempos em que a criatividade parece ser o grande motor da produção de lucro. Talvez seja por esse motivo que muitos tentem empreender nessa área associando os dois campos: o de ganhar dinheiro e o da produção de algo “legal”, “descolado”, e que tenha impacto sobre o pensamento e a opinião das pessoas. Provavelmente seja também por isso que o desejo dominante que paira na atmosfera seja o de se tornar um influencer, pois essa é a profissão promissora de nosso século. 

Agora indo mais direto ao ponto, naquilo que diz respeito ao imaginário – matéria esta tão barganhada nesses nossos tempos –, as experiências artísticas, que, aparentemente, têm como pedras basilares a imaginação, não ficaram isentas da contaminação ocasionada pelas mudanças tecno-comunicacionais dessa nossa pequena era de menos de 50 anos. Há uma conexão bastante forte entre artes, tecnologia e comunicação, mesmo quando essa relação não se mostra tão aparente. 

Se você está lendo este texto em uma tela de computador ou de smartphone e pode copiá-lo e compartilhá-lo incontavelmente, é porque, em algum momento, foram criados mecanismos que permitissem que isso acontecesse. Estas palavras que aqui foram digitadas, há poucas décadas seriam viáveis apenas através da impressão tipográfica em páginas de livros e jornais. A prensa como um dispositivo de reprodução, desde a sua invenção há mais de 500 anos, foi se sofisticando até se transformar, por exemplo, em gráficas ou em editoras que, mais do que boas ideias, vendem requintes de fetiche e ostentação. Apesar de nem todas as formas de artes utilizarem-se de palavras impressas, os meios técnicos que possibilitaram as reproduções de imagens, coloridas ou não, permitiram que a famosa aura de um objeto único fosse dissolvida e, ao mesmo tempo, nunca como antes, tão desejada. 

Imagine agora que um romance escrito em um livro há mais de cem anos era um importante objeto que regava os imaginários de uma determinada população. Eram em folhas de papel, e com tiragens certamente menores do que as atuais, que esses recursos conseguiam desenhar alguns hábitos culturais, tais como o silêncio, a introspecção e a paciência da fruição. Apesar de a plataforma livro ainda existir e de haver pessoas que resistem a abandoná-la, não podemos mais ignorar o fato de que as condições e os hábitos de leitura não continuem os mesmos do século XIX. 

De uma forma semelhante ao livro, é possível olharmos também para o modo como a contemplação de um quadro também se transformou. Imagine-se em uma sala de um museu, uma sala espaçosa e silenciosa, com ninguém mais dentro. Nela, em uma das paredes, há um quadro; e, em toda a sala, existe apenas esse único quadro com uma imagem relativamente simples de ser interpretada: uma fruta, como por exemplo uma pera, com uma de suas partes em fase de apodrecimento. Qual é a sua expectativa de tempo de ficar dentro dessa sala? Qual é o esforço de atenção direcionado à intepretação do quadro antes de vir à mente um fatídico “ok, já entendi”? Como a sua percepção reage a uma sala vazia e em silêncio? Provavelmente, as respostas dadas a essas perguntas estão intimamente ligadas aos costumes que todos temos atualmente em nossa vida cotidiana. 

Outro exemplo com impactos mais atuais – e talvez com impactos sobre um maior número de pessoas –, que nos ajuda a compreender não apenas a evolução das plataformas midiáticas, mas também as mudanças em nossos hábitos, é o das empresas de streaming e a internet, que oferecem aquilo que a TV aberta utilizava como uma marca de sua programação nos anos 1990: o “cinema em casa”. Se, por um lado, esse tipo de serviço, o da TV aberta, continua sendo ofertado, sobretudo para pessoas com menos recursos e que têm acesso, se muito, apenas a um sinal de transmissão; por outro lado, a própria internet e a competição trazida pelas plataformas fizeram com que a grade de programação das grandes empresas de entretenimento televiso precisasse se readequar aos costumes criados pelo novo ambiente dos streamings. Não se trata mais de comunicação unilateral, na qual a audiência consome passivamente o conteúdo transmitido; essa audiência também deseja escolher o que quer ver, incluindo-se nesse ponto o direito a cancelar a assinatura de um plano de serviços e trocá-lo por outro, ou de, ao invés de ficar com duas plataformas, permanecer apenas com a empresa concorrente. Afinal, diferentemente dos anos 1990, quando, no máximo, para se conseguir “falar” com um apresentador de um programa era necessário mandar uma carta para uma caixa postal, hoje, sabemos que basta sacar o celular do bolso – isso se ele já não estiver implantado em tempo integral na palma da mão, quase como se fosse parte do corpo – e enviar algum tipo de mensagem instantânea para se queixar de algo que não agrada sobre o que é veiculado naquele exato momento. 

Se novos hábitos culturais estão nascendo dentro de novos ambientes, esses novos hábitos estão, também, se transportando e reconfigurando os velhos lugares. Ir ao cinema é, sem dúvida, um costume que muitas pessoas ainda têm. Há, contudo, uma espécie de migração de costumes que temos criado quando assistimos a um filme dentro de casa, onde podemos pausá-lo, voltar e adiantar cenas quantas vezes quisermos; podemos opinar em voz alta sobre a trama ou, pior ainda, sobre uma fofoca da vida pessoal de um ator que está naquele elenco. Enquanto ruídos que também são, o som e o cheiro da pipoca soam como doces melodias em salas de cinema que, muitas vezes, são despudoradamente transformadas em extensões da sala de casa. 

Fruir arte nos tempos atuais é um gesto que não pode mais ser desassociado dos hábitos perceptivos e cognitivos de nosso tempo. Na verdade, trata-se de uma ótica que nos ajuda a entender não apenas o presente, como também períodos anteriores da História da Arte. Afinal, também em A Última Ceia, de Da Vinci, do final do século XV, os recursos técnicos e o imaginário cultural da época também lá estavam presentes. Do ponto de vista da contemplação, aqueles que podiam ter acesso e admirar aquela obra o faziam a partir de costumes bastante diferentes dos atuais, já que as telas que estavam em jogo não eram ainda feitas como as de hoje, que praticamente servem como peles para encobrir as sinapses do silício. 

Atualmente, estamos imersos em uma avalanche de informações que transitam por todas as dimensões possíveis. Fruir arte, neste contexto, implica também em lidar com uma quantidade enorme de imagens, vídeos, textos, além de, mesmo que não conscientemente, enfrentar alguns hábitos que estão cada vez mais solidificados em nosso corpo. Por isso, não é mais possível analisar o contexto das produções artísticas e culturais sem que, junto com elas, sejam consideradas as transformações em nossa percepção, sobretudo em decorrência das distensões midiáticas que massageiam nossa cognição. 

Retomando McLuhan, que dizia que os meios de comunicação são extensões do ser humano, mas agora olhando com mais atenção não apenas para o meio como mensagem, mas sobretudo enquanto massagem, é possível reconhecer que a quantidade de horas que gastamos em frente às telas – como você está neste momento, bem como eu também passei um tempo razoável para escrever este texto – interfere não somente no impacto de luz sobre nossa retina, como também na organização de nossos pensamentos. 

É necessário que sejam feitas, entretanto, algumas observações. Ler um texto em uma tela de smartphone ou computador, por mais desagradável ou incômodo que seja, não é a mesma coisa que ficar horas e horas rolando a barra do feed do Instagram. O maremoto de imagens e vídeos – sendo estes últimos quase todos de curtíssima duração – vai criando uma espécie de padrão em nossa apreensão, que é migrada para contextos que vão além das redes sociais digitais. De certo modo e de maneira resumida: passamos a interagir com o mundo offline de um jeito semelhante às nossas ações no ambiente online. Ou seja, se um dia foi possível desassociar mais enfaticamente a existência nesses dois mundos, talvez hoje, não exista mais uma second life criada apenas em domínios digitais, já que ela vazou para a nossa vida mais cotidiana. 

As massagens digitais contemporâneas têm também um forte peso para se medir o nosso tônus físico e intelectual diante dos produtos artísticos e culturais que nos são ofertados pelas redes digitais. Se, da mesma maneira que um texto lido em uma tela e um vídeo de rede social são ações com qualidades distintas, apesar de ambos estarem inseridos dentro do mesmo meio técnico, não podemos igualar todas as produções artísticas que são criadas para esse tipo de ambiente. Algumas utilizam este meio como uma espécie de veículo de impulsionamento e de divulgação; outras, por outro lado, sabendo que nenhum meio é neutro e que ele já é em si uma mensagem, tentam experimentar as funcionalidades da ferramenta, de modo a compreender e propor questionamentos para a linguagem com a qual escolheram trabalhar. 

As mudanças tecnológicas não têm impacto somente nas formas de produção. Há, também, uma forte interferência nas formas de apreensão – destaque dado por este texto. Se retomarmos o exemplo mencionado anteriormente, da leitura de um romance no século XIX, quando, possivelmente, exercitava-se o silêncio e um determinado tônus de concentração, veremos que hoje a atenção que empenhamos para a fruição tende a ser gerida de maneiras bastante diferentes. (Obviamente, ainda há muitas pessoas que resistem à aceleração provocada pela esfera tecno-midiatizada em que vivemos, e que, por exemplo, ao se negarem a ter celulares e redes sociais, recorrem a um bom livro para exercitar imaginários complexos. No entanto, mesmo essas pessoas são afetadas pelos habitantes da tecnosfera-imagética. Por mais que tentem se isolar, ainda assim, vez ou outra, precisam minimamente descer da copa de suas árvores, de onde conseguem avistar algum horizonte e respirar o ar mais puro da floresta-cidade). 

Neste cenário atual em que vivemos, onde há robôs, algoritmos e inteligências artificiais muitas vezes mais eficazes do que algumas inteligências humanas, é urgente que nos perguntemos quais são e como se dão as outras formas de inteligência concernentes à nossa espécie. Fato é que não podemos mais ignorar a presença da inteligência artificial, e que ela é, em diversos contextos, extremamente bem vinda para nos ajudar a solucionar problemas diversos. Como fruto da inteligência humana, a artificial é também uma forma de extensão de nossas habilidades motoras e cognitivas. No entanto, quando paramos para analisar o impacto desse tipo de inteligência sobre nós, percebemos um outro modo de vida que emerge. Diante do mundo tecnológico, enquanto indivíduos e sociedade, notamos que as formas complexas de pensamento e de comunicação geradas até então, ao invés de se espraiarem através das diversidades, parecem estar, pelo contrário, minguando e solapando em um mar de mesmices.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.