Em 1923, Mario de Andrade estreou na Revista do Brasil, dirigida por Monteiro Lobato, as suas crônicas de arte. Misto de inteligência, erudição, bom humor e de tecituras inusitadas que cosiam todas as linguagens artísticas e referências que passavam do erudito ao popular sem nenhum pudor, esses textos provocadores e inusitados eram também uma resposta aos poucos elogios e muitas críticas que os modernistas ainda recebiam nos jornais e outras publicações da época. A Semana de Arte Moderna de 1922 e lançamento de "Paulicéia Desvairada" forneciam munição para que os críticos do modernismo fizessem com o nome de Mário de Andrade estive continuamente envolvido em controvérsias intermináveis sobre seus poemas, suas ideias, sua vida... E a tudo ele respondia no seu melhor estilo: desviando de todas as polêmicas com um sorriso e inventando mais algumas outras.
Sou lobo, já o reconheci; e lobo sem alcateia.
(Mario de Andrade em Seu "Discurso Inaugural", na Revista do Brasil)
Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? Moloch!
(Allen Ginsberg)
Entre pastores e ovelhas continuamos. Mas por onde andarão os lobos?
Boas metáforas parecem nos alcançar não importa quanto tempo passe. Disse o Mario: somos lobos, pastores e ovelhas, cabendo a ele próprio a alcunha de lobo – engano ou vaidade? E, se aos editores corresponde o papel de pastores, resta ao público ser as ovelhas. Ah, Mario, se nos pudesse nos ver ainda hoje... Mas falemos de Arte! Que é o que faremos aqui. A Arte insiste em continuar e é preciso falar dela. Talvez, entretanto, não como ela tem sido falada. Afinal, de que adianta arrumar adjetivos para tudo e elogiar obras ou artistas? Mas também de que adianta maldizê-los? “Que experiência sublime! Que força, que tensão, que provocador, que importante!”. Nada mais insosso. Pelo menos no atrito, sai faísca para iluminar algo do escuro. Veja bem: não é a Arte que é o nosso problema – ela passa muito bem, obrigado. Falar de Arte é que é a nossa questão.
Colocada de modo simples, dizemos: como é que podemos falar da Arte? Será possível dizer dela apenas com aquilo que temos aceitado como crítica – esse mundo dos adjetivos múltiplos sem fim: feio/bonito, alto/baixo, tenso/fraco, acessivelzinho/hermeticuzinho? – ou com os discursos acadêmicos – Bourdiê, Deleuzê, Butlêr, Mbembê? Não poderia o discurso sobre a Arte se reinventar, se reinaugurar no encontro com cada obra? Que o contato com diferentes manifestações da Arte não enlouqueça o crítico, mas o torne cada vez mais blasé (para rimar com todos os seus teóricos que ele pretende emanar) é um fenômeno assaz curioso. A Arte não o desloca, mas o encaminha para a calma dos que já viram de tudo. Todos os caminhos levam a Bienal de Veneza, mas as críticas de Arte não levam nos levam à loucura exatamente.
O problema não tem solução, tem problema. Talvez não seja possível mesmo outros modos de falar sobre a Arte. Nossa criatividade contemporânea para qualquer discurso talvez tenha esbarrado em alguma espécie de limite – “eles venceram e o sinal está fechado pra nós, que somos jovens”. Diante do limite, duas possiblidades: ou o transpomos ou retornamos. Mas retornar para onde? Avançar não parece ser viável. Não inventaremos mais nenhum pós – já temos muitas coisas em processo de superação faz 50 ou 70 anos e começam essas ideias a juntar poeira.
Retornemos! Parece ser a escolha de muitos que se dedicam a coser os discursos sobre Arte, retomar os ares do século XIX. Vemos de volta, ainda mais no campo das Artes Cênicas, o elogio das técnicas, da primeira bailarina, do grande diretor e da cenografia e figurinos bem-acabadas... O que não parece ser justo com nosso próprio tempo. E tem um certo cheiro de mofo. Em uma época em que a internet revolucionou os modos de nos comunicarmos e, mais do que nunca, péssimas ideias circulam na velocidade dos trens-bala, precisamos olhar a Arte com outros ouvidos. Fazer outros exercícios de percepção. Pois, se diz o ditado “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”, não seria exagero acrescentar nesta lista, “crítico de arte”.
Se alguns críticos e acadêmicos do século XXI repetem incansavelmente o século XIX, tentemos aqui, nestas crônicas de Arte, nossa pequena ousadia (ou inventaremos moda): daremos um passo para repetir ao menos o século XX. Um novo vintage: o século passado! Evoé: Mario, Oswaldo, Tarsila e Anita – a pintora!
Escrever como quem procura é o desafio e minha forma de honrar os lobos. Não produzirei, assim, alcateias. A empreitada é tão fracassada quanto solitária, mas pouco importa. Talvez nem leitores existam para novas crônicas de Arte – um alívio! –, pois não é para fazer escola que escrevemos. Tentarei tornar o meu próprio pensamento menos chato: gostaria que pensar fosse um risco e uma aventura, como tem deixado de ser. Não para agradar ninguém. Nem artistas, nem o público. Não pretendo tanto. Quem sabe agradar a mim mesmo – o que também não é concesso.
É preciso ter olhos e ouvidos atentos e sensíveis. Ouvir uivos e silêncios. Afinal, o barulho é incessante. Que adianta mais uma voz no meio disso tudo? O objetivo não é fazer calar as múltiplas vozes digitais e seus mais que múltiplos ecos. Entraremos também nesta falação digital, mas teremos ao menos a dignidade de não fazer barulho para chamar atenção. Falaremos no tom manso de quem puxa conversa com o desconhecido mais próximo numa festa um pouco chata.
Eis o nosso projeto: fazer Arte enquanto falamos de Arte – nada menos original na proposta, o que não impede a originalidade na forma. Descobriremos todo resto no caminho. Se cometermos erros ou incorrermos em inexatidões, teremos, a nosso favor, a tentativa de fazer isso de maneira a produzir alguma coisa interessante. Que ela não valha pela sua correspondência factual, pelas suas informações, valerá pela originalidade de seu ímpeto no meio deste fim de balada. Falaremos de Arte: um projeto sem qualquer outros projetos.
Visitamos esses Modernismos como o bigode de Duchamp sobre a Monalisa – com respeito e escárnio ao mesmo tempo. E se os modernos e suas semanas são alvo de revisões e revisões que questionam seus limites e importância, dirá um lobo: valem eles também ser revisitados como antídoto aos fascismos e caretice que tem nos assolado. Dessa fruta gogóia, nem chegamos ao caroço. Antes de fazer do Modernismo algo podre, sem valor, e pensarmos também na sua superação – mais uns pós –, pensemos nele como adubo, apropriemo-nos das reminiscências para reinventar nosso presente que anda precisando tanto. Com algum sorriso e alguma inteligência, esperamos.
E, novamente, já disse o Mário: “de tudo que ficou dito, 4 coisas tem importância maior que esta crônica. 1.º: Falarei de arte. 2.º: Farei Arte. 3.º: Não tenho programa. 4.º: Afastarei de mim o máximo de leitores possível. E estou satisfeito comigo. Contei uma anedota curiosa. Mostrei discreta erudição. E irritei muita gente.”
Não poderia ser mais auspicioso seu Discurso Inaugural.
Esperemos que o nosso – como uma boa cópia! – também.