Oblíqua
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NOVOS TEMPOS

No fundo da farsa encontramos algo?

Por: Rodrigo Monteiro
junho - 2023

“al fondo hay sitio”

(“no fundo há lugar”)

lema do Micromuseo

 

Há alguns meses, em um domingo típico do centro da cidade de São Paulo, deparei-me com uma cena que me fez refletir sobre alguns de nossos hábitos contemporâneos acerca do modo como estamos e olhamos uns para os outros e para a cidade, e que têm fomentado uma fruição empobrecida, já bastante guiada, sem gradação de tons e tônus. A situação em questão se tratava de uma senhora de idade avançada, bastante encurvada, que, sentada na beirada de uma calçada de uma avenida movimentada, olhava fixa e profundamente para dentro de um copo plástico já vazio. Tal situação se contrastava bastante com a maioria das outras pessoas do entorno, que, mesmo andando, olhavam e mexiam em seus celulares.

Eis um dilema: a senhora que olhava para o fundo de um copo versus uma multidão que fixava sua atenção em telas de smartphones.

O que e como pensam cada um desses personagens que, aparentemente, colocam-se diante de si, da cidade e dos outros de formas tão distintas? A senhora com o copo parecia compenetrada em uma viagem, cujo portão de embarque estava no fundo de um pedaço de plástico. A multidão que olhava para as telas, por sua vez, também garantia as suas viagens – mas, diferentemente a da primeira, a da senhora, estas pareciam se realizar através de pacotes com translados e roteiros já traçados, e cujos pontos turísticos são aqueles mais clichês.

Em meio às mudanças de comportamentos ocasionadas por conta da quantidade de horas que passamos em frente às telas, nossa percepção parece ter perdido alguma ludicidade, que permitiria, por exemplo, transpassar o fundo de um copo. Temos deixado de imaginar mundos outros, onde as lógicas mais surreais e absurdas contribuiriam para que o mundo real fosse menos árido. Ao invés do aguçamento lúdico que nos convida a fabular, temos exercitado um enquadramento plástico e reduzido, que promove mediações simplistas da realidade.

Pessoas nascidas e criadas há algumas décadas supostamente conseguem se colocar no lugar de uma senhora que deixa a sua imaginação ser guiada por um objeto banal. Isso porque, muito provavelmente, a geração dessas pessoas tenha sido uma das últimas que conseguiu ter acesso, na TV aberta brasileira, a programas que aguçavam o imaginário através da contação de histórias com objetos cotidianos. Novelos de lã transformavam-se em ovelhas; palitos de dente em soldadinhos; caixinhas de fósforos em prédios; bolinhas de gude em reis e rainhas. Não que as novas gerações não exercitem a ludicidade e as invencionices do faz-de-conta através de outras maneiras; mas dificilmente as fazem através do acesso gratuito disponibilizado pelas mídias de nossa indústria cultural.

Dos anos 2000 para cá, diminui-se significativamente a grade de programação ofertada para crianças. E a pouca que ainda resta lida, muitas vezes, com uma lógica que instiga tudo aquilo que já é exercitado pelas crianças quando estão com os tablets ou os celulares de seus pais em mãos: o super estímulo visual através de uma explosão de cores e da rapidez com a troca de cenas. A alucinação desse processo não garante, todavia, que o efeito dessas produções seja um exercício fabulatório – algo que, possivelmente, garantiria uma ruptura com as lógicas habituais de ver e de se estar no mundo. A indústria cultural tem operado de forma semelhante tanto com as crianças quanto com os adultos: diminui o espectro imaginativo, dando-lhes o máximo possível de informações visuais e sonoras, que já dizem o significado final do que algo deve ser. Estendida também para as pequenas telas, essa indústria cria atalhos para o pensamento, que deixa de divagar pelos caminhos do incompreensível e do inapreensível.

A maioria dos produtos culturais consumidos em massa por adultos não foge à regra: são pobres, ocos e insossos. Trabalha-se pouco com a sutileza e com a demora; investe-se muito no óbvio, na redundância e na rapidez. Os estímulos perceptivos presentes na maioria das novelas, filmes, séries e reality shows são sempre muito parecidos. Ao invés de convidar para outros estados de fruição, esses produtos simplesmente reforçam o mais do mesmo, criando uma avalanche de mediocridades que garantem, desta forma, um estado cognitivo também medíocre. Afinal, aumentar demais a taxa de complexidade de determinados produtos culturais faria com que a demanda diminuísse, ocasionando uma desvalorização do capital da atenção – moeda esta tão barganhada nos tempos atuais.

Atravessamos um momento em que, em muitos contextos, as crianças são preparadas para serem adultos com pouca prática imaginativa; ao passo que os adultos são constantemente convidados a reviverem momentos da infância – mas não através de um exercício radical de imaginação, e sim da infantilização de suas subjetividades. A fabulação que se daria a partir do faz-de-conta parece se transformar, cada vez mais, em um faz-de-conta da fabulação. Dentro da atmosfera tecnomidiatizada, raramente nos permitimos experimentar os desvios da imaginação, uma vez que estamos apenas fazendo de conta que imaginamos, que criamos e inventamos mundos. Bom seria se ao menos estivéssemos cientes desse cinismo, o que possibilitaria algum movimento. Estamos, entretanto, acreditando e vivendo na farsa. Não somos, ao fim e ao cabo, hipócritas que fingem acreditar em nossas mentiras, já que, de fato, acreditamos nelas – quem dera se essas mentiras tivessem qualidades imaginativas, presentes, por exemplo, em bons espetáculos teatrais...

Aquela senhora que olhava para o fundo de um copo de plástico não necessariamente estava abrindo portas de um mundo faz-de-conta – ela poderia simplesmente estar cansada, esperando os pensamentos se assentarem; ou mesmo podia estar desiludida e assaz desamparada pela cidade e pela humanidade. A sua imagem, contudo, rodeada por outras pessoas que olhavam para as telas de celulares, convida-nos a indagar sobre a condução de nossos pensamentos, de nossa imaginação: ora os conduzimos de um modo fluído, como o líquido que estava naquele copo; ora eles são conduzidos por quadraturas restritivas, que limitam nosso olhar sobre o mundo, mas que também nos fazem crer que essas são as melhores molduras que revestem o quadro de nossa vida.

A falta de complexidade no modo como lidamos com o mundo – e que bem poderia ser aprimorada através de imaginações radicais – não diminuirá, no entanto, a complexidade dos fenômenos do mundo. O que infelizmente está diminuindo é nossa sensibilidade perante o que não está escancarado. Assim como possivelmente fazia a melancólica senhora que se deixava atravessar pelo fundo de um copo: ou buscamos explorar mais e de outras maneiras a nossa imaginação, a fim de aguçar a percepção diante do não-óbvio; ou, pelo contrário, o único fundo que alcançaremos será aquele já bastante enrijecido, ainda que ele seja apenas plástico.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.