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+ C A C O S, de Cristian Duarte em companhia

Por: Rodrigo Monteiro
junho - 2025
Imagem de divulgação Instagram: @crisduarte_

E se explodíssemos certas banalidades na dança? 

 

Em tempos pautados pela preguiça do pensamento, todo e qualquer gesto criativo proponente de ideias reais mostra-se como uma dádiva. Somos presenteados quando um acontecimento traz à tona uma qualidade de presença, que ao nos colocar diante de fatos e materiais insistentes, ata-nos também ao desprendimento do invariável. A série C A C O S, de Cristian Duarte em companhia, enquanto um importante laboratório compositivo da e para a dança atual, investiga maneiras outras de se organizar e comunicar aquilo que pulsa nomes ainda não ditos, mas que não por isso não sejam existentes e não estejam presentes.

Dentro do projeto Sempre Junto e Nunca Igual (contemplado pela 36ª edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura), foram criados 5 C A C O S, coreografados e dirigidos por Cristian Duarte, com assistências de direção de Rodrigo Andreolli e Vicente Antunes Ramos, acompanhamento dramatúrgico de Júlia Rocha, música orquestrada por Tom Monteiro, iluminação de André Boll e produção feita pela Corpo Rastreado.

Os C A C O S #2, #3 e #4, apresentados em um primeiro momento, agora juntam-se aos C A C O S #1 e #5. Todos eles, seguindo uma constante exploração de suas dramaturgias, combinam-se uns aos outros, experimentando não apenas distintos modos de apresentação, mas também tessituras curatoriais. O C A C O #2, Me Envenena, Vem Cá, é dançado por Gabriel Tolgyesi e Maurício Alves; o C A C O #3, Bote, por Danielli Mendes e Leandro Berton; o C A C O #4, Tudo Vira, é dançado por Allyson Amaral, Andrea Rosa Sá e Felipe Stocco (todos eles já retratados anteriormente no texto Inteligências da Matéria). O C A C O #1, Morde como um cão, dançado por Aline Bonamin e Paulo Carpino, e o C A C O #5, Presentes, dançado por todas as pessoas do elenco (Aline Bonamin, Allyson Amaral, Andrea Rosa Sá, Cristian Duarte, Danielli Mendes, Felipe Stocco, Gabriel Fernandez Tolgyesi, Leandro Berton, Mauricio Alves e Paulo Carpino), acrescentam ainda mais camadas a um tecido coreográfico engenhoso e sofisticado.

 

C A C O #1, Morde como um cão

A instabilidade da matéria e da energia é o que dá graça e beleza à vida. Parece um contrassenso, mas é através do vislumbre do fim, anunciado nos pequenos detalhes do cotidiano, que se despertam em nós as forças que nos grudam àquilo que nos deixa existir. Morde como um cão, com Aline Bonamin e Paulo Carpino, evoca e ecoa os grunhidos de uma certa selvageria, de uma ferocidade do som em estado de criação.

Somos emantados por uma camada de algo estranho, que, ao invés de afugentar, oferece a chance de ficar para que possamos nos acostumar. O que outrora era ruído despercebido sai da indiferença, adentrando em territórios sutis e frescos da percepção.

Vigorosamente, o espaço é expandido pelo som, pelos deslocamentos e por todas as fricções dos elementos de cena, sejam eles visíveis ou não. Em momentos diversos, são diagonalmente transferidos não apenas os movimentos de Bonamin e Carpino, mas também as luzes, as lâmpadas, as aproximações e os olhares. O trabalho ajuda a lembrar que procedimento e critério são eixos fundantes de uma dramaturgia: faz-se necessário estabelecer parâmetros para saber com o que estamos lidando, o que e como estamos comunicando. Para transpirar e exalar os seus desejos, Morde como um cão articula vocabulários bastante aprimorados, a exemplo da congruência da espacialidade e da presentidade dos sistemas musculares que impulsionam o salto, a queda e o grito.

Da projeção das luzes que se incidem sobre a cena, alguns corredores se abrem, pelos quais caminham, de olhos fechados, personagens de uma certa sofreguidão. Não se trata de uma história, tampouco de uma narrativa cadenciada, mas de uma partitura que desperta uma avidez, um estado de contemplação misturado com ânsia por ressignificação. Ao também dançar no quase escuro, Morde como um cão arremessa sombras que parecem presas nas paredes, mas que, na verdade, descolam algumas fixações das formatações de fruição.

 

C A C O #5, Presentes

E se esta reflexão fosse um convite à desestabilização dos modos habituais de se pensar e falar sobre dança? E se as palavras aqui apresentadas pudessem entrar em contato com as que povoam o seu imaginário neste exato momento, de modo a coreografar o seu pensamento? E se Presentes fosse compreendido como uma partitura de dança que ativa uma multiplicidade de movimentos, ao invés de um único registro visual solapado em uma organização bidimensional? E se as formas de proximidade espacial entre artistas e público incitassem a busca por um outro jeito de se criar e ver uma coreografia? E se essa mesma proximidade, além da incitação, também estimulasse estados diversos de excitação? E se o cheiro falasse, o que ele diria? E se o olho no olho não olhasse apenas os olhos, mas também o coração e as estranhas? E se o corpo que decupa o gesto de andar para trás estivesse sinalizando caminhos outros e maneiras para seguir em frente? E se todo um deslocamento pelo espaço, que é feito em sentido anti-horário, fosse metáfora de um retorno no tempo? E se fosse possível voltar no tempo, conseguiríamos resgatar alguma força, alguma potência de criação que não fosse subserviente aos status da moralidade dominante? E se o “e se” fosse também propósito material de muitas danças, e não apenas a lógica discursiva que adere de forma fácil e simula algum entendimento? E se houvesse mais espaços e oportunidades para que experimentações mais ousadas pudessem emergir? E se dessas experimentações surgissem estufas capazes de cultivar outros modos de estar junto, de perceber e lidar com as alteridades? E se, além do tempo, a contagem que dá ritmo e métrica a uma obra também contasse que vale a pena arriscar? E se o risco não fosse somente uma iminência, mas também uma incisão gráfica que está dentro e fora do olho? E se as incisões que acometem o corpo de quem faz e vê dança desenvolvessem texturas nos significados? E se Presentes fosse uma dança de toques, literais e figurados, que pudesse nos levar a sentir a profundidade da pele? E se Presentes e todos os outros C A C O S fossem uma maneira para checar e rever o modus operandi e o funcionamento de uma máquina? E se, diante de proposições como essa, conseguíssemos reavaliar alguns dos nossos hábitos de pensamento, de ação e de criação?

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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