Em busca de uma fala verdadeira
Azira’i, espetáculo dirigido por Duda Rios e Denise Stutz, com a atuação brilhante de Zahy Tenterar, poderia ser o disparador para discutir muitos assuntos que já permeiam o mundo da cultura e das artes. Sem pensar muito, poderíamos facilmente relacionar o espetáculo com questões relativas aos apagamentos históricos operados nas diversas instituições culturais e artísticas de muitas populações e minorias no Brasil ou, de modo mais específico, poderíamos abordar a importância de valorizar a arte e identidades indígenas no contexto de novas perspectivas que pretendem fazer frente à colonialidade em suas diferentes formas. Todos esses assuntos são muito importantes, sem dúvida. No entanto, o que procuramos aqui é não perder de vista aquilo que, de maneira singular e urgente, Azira’i nos convida a sentir e pensar, não por seu enquadramento nos debates sobre diversidade e identidade, mas exatamente onde o espetáculo escapa a esses debates e produz outros desdobramentos. Visitar esses outros temas a que nos convida Azira’i e compreender sua importância depende de nos mantermos abertos para outras palavras, conceitos e lógicas, pois na escolha de vocabulário, no uso de nosso repertório de conceitos e pensamentos, podemos evidenciar questões e dar visibilidade a temas importantes, mas também podemos fazer sombra àquilo que de maneira menos evidente se mostra. No caso de Azira’i, seria a perda de uma oportunidade de pensar questões radicais sobre a própria linguagem do Teatro.
Um espetáculo que concentra toda sua força nos diversos usos da palavra – enquanto narração, canto ou memória – parece sintetizar sua maior provocação em uma pergunta que nos arremessa num grande hiato: se a língua que Zahy fala e nos ensina durante uma cena, o Ze'eng eté, significa fala verdadeira, o que é que significa essa língua que nós falamos? A mesma provocação foi retomada pela atriz na 34ª edição do Prêmio Shell, no qual Zahy recebeu o prêmio de melhor atriz por Azira’i. Ela nos lembra: sua língua – na qual ela abriu seu discurso na premiação – significa fala verdadeira.
O que significa falar com uma língua verdadeira? Onde estaria a verdade de uma linguagem?
Essa questão de cunho bastante filosófico já fez parte da reflexão de grandes nomes do pensamento, que tentaram compreender a questão da linguagem e seus mistérios, tanto na relação com a existência humana quanto na relação com ela própria: afinal, somos a partir da linguagem. Em uma citação de seus estudos sobre a linguagem, o filósofo alemão Martin Heidegger ainda vai mais além e relembra: “o ser humano é uma promessa da linguagem”. A linguagem não é apenas um modo de se comunicar e trocar informações de modo banal, é o modo pelo qual instauramos um mundo e vivemos, pensamos, transformamos e criamos neste mesmo mundo. A linguagem é a possiblidade do mundo configurar-se enquanto tal.
Isso, no entanto, não nos coloca ainda diante do problema da verdade da linguagem.
A verdade de uma linguagem não tem relação com dizer uma verdade ou uma mentira. O problema é muito mais complexo: a verdade de uma linguagem nos remonta a seu próprio aparecimento. Não a sua origem em sentido histórico – por exemplo, quando pensamos de onde veio determinada língua, idioma ou dialeto. Mas no próprio manifestar da linguagem: de onde e por que uma língua (ou a linguagem) fala?
Essa pergunta, que aparentemente expressa uma contradição – pode uma língua falar? não seríamos nós que falamos a língua? – não é tão estranha quando pensamos nas modulações que, nos lembra ainda Heidegger, são possíveis na articulação da linguagem: um modo inautêntico e outro autêntico. O primeiro é o que ele caracteriza como falação, ou seja, um modo de aparecimento da linguagem no qual no aparecer do que se diz existe apenas a reprodução do já sempre dito, uma colagem de jargões, uma repetição de tudo que já dizem por aí sem nenhum risco. Quando a linguagem fala, neste sentido, é a partir de um “a gente”, impessoal, sem risco, pois é simplesmente aquilo que todo mundo diz.
Por outro lado, uma fala autêntica é aquela que busca corresponder àquilo que ela pretende expressar. E essa correspondência só é possível pelo exercício delicado de uma escuta que se abre. E escutar vai muito mais além de ouvir: é estar atento de corpo inteiro ao que se mostra, é acolher aquilo que se mostra com muito cuidado. É saber ver. Assim, a fala autêntica é marcada fundamentalmente pela escuta. O falar, neste sentido, se sustenta muito antes de qualquer dizer, em um escutar. Ele se produz a partir de um risco: o silêncio. Ao escutar o silêncio daquilo que se pretende expressar e na tentativa de corresponder a este silêncio, é que a fala se torna autêntica. E é assim que ele se torna tão profundo e desestabilizador. E por meio dessa escuta que somos surpreendidos com as formas que tomam a linguagem.
Assim, voltamos à força de Azira’i e de sua fala verdadeira. O que é surpreendente na organização do espetáculo e de sua execução é o delicado exercício de procurar as formas, as palavras e os tempos, para tocar em algo tão delicado como aquilo que a história de Zahy e sua mãe tem para nos oferecer. Não se trata apenas de encontrar boas formas ou usar os recursos do teatro que represente de forma banal essa relação, mas de tentar procurar os modos que correspondam à força e à beleza dessa história em sua complexidade. A linguagem do teatro, na voz e palavras de Zahy, encontra sua verdade e parece absolutamente justa, delicada e profunda em sua simplicidade. E, como não poderia deixar de ser, torna-se emocionante para toda a plateia.
Esse é um exercício raro e belo para os dias atuais – o desejo pelo encontro e pela comunicação. Não se trata do que chamamos no jargão do teatro experimental de uma pesquisa de linguagem, de uma tentativa quase paranoica de encontrar formas para o teatro que não tenham sido experimentadas ainda simplesmente por serem novas – ou seja, o fetiche da novidade. A pesquisa de linguagem que Azira’i nos convida é muito mais profunda: a tentativa de escutar e viver o encontro que só é possível no Teatro.
Ao dar presença à sua mãe no palco, Zahy Tentehar faz o exercício mais complexo e bonito do Teatro e de qualquer outra linguagem: ela toca no silêncio que subjaz às palavras. E, deste modo, toca fundo em todos nós.