Um motim cognitivo contra o(s) ordinário(s)
A tendência do mundo atual tem sido de rotular, categorizar e emoldurar não apenas as identidades, mas também as possibilidades de comunicação de um propósito. Compreensível, certamente, que enquanto tática de guerrilha, essa seja uma estratégia utilizada em diversos campos sociais. No entanto, quando nos referimos às vias e às veias comunicativas de trabalhos artísticos, na medida em que cerceamos mais e mais as invencionices da linguagem e acabamos por compreendê-la como mero suporte de um discurso, tendemos a esvair toda a potência para se ver e se fazer algo outro.
Eu não sou só eu em mim, do Grupo Cena 11, já diz no próprio título a que veio. Não se trata de incorrer ao reforço de algo que já supostamente se sabe, isto é, a consolidação de uma identidade dada e imutável. Não se trata, tampouco, da reutilização ou do resgate de recursos simbólicos que guiam a leitura para o mais óbvio do que seria uma identidade individual ou nacional. Há riscos no tema, e como não poderia ser diferente para o Cena 11, há também explosão no modo de se colocar tudo isso em cena.
As centenas de batidas por minuto mais os flashes de luz podem tender a fazer com que a percepção entre em um estado dervixe, já que aquilo com que de certa forma já estamos habituados, ou seja, o excesso de imagens e sons, é ele próprio estourado. O estouro é estourado. Se a intenção é fazer olhar e estar de um jeito diferente, uma atmosfera inicial precisa ser implantada, caso contrário, como seria possível sair de si para buscar outros estados e possibilidades do eu mesmo?
Muito frequentemente, o trajeto que se faz para se assistir a um trabalho de dança é guiado pela identificação de passos, que estalam no corpo de quem vê alguma sensação de virtualidade. Tal sensação ou é acionada pelo reconhecimento de um padrão de movimento, ou pelo estranhamento que, ao se voltar para si, projeta o outro como um desejo a ser alcançado. Na dança de Eu não sou só eu em mim, os passos não são nem projetados na relação eu-outro, muito menos espelhados no eu-em-mim-mesmo. Eles são ativados: acionam-se perturbações que realçam a porosidade das membranas e embaralham os vetores, de modo que o fluxo de criação de imagens (externas e internas) colapsa os contornos.
As dissoluções que se dão em gotas, passos, luz e som combinam-se também às tecnologias diversas que estão tanto dentro, quanto fora da cena - estas que já se encontram imantadas dentro de nós. As imagens apresentadas desfiguram uma ideia de pureza, de origem e originalidade, pois, através do pas de deux com a Inteligência Artificial, revela-se que a mutação não é um fim, e sim o princípio e a condição da existência.
O Grupo Cena 11 promove aquilo a que se propõe: fazer da dança uma tecnologia de comportamento. O agudo de um grito arremessa agulhas no ouvido. As misturas de criaturas transbordam das telas em cena, inundando todo o espaço envolta. O reconhecimento de um ou outro passo, de um ou outro estilo, é quase que imediatamente desconfigurado. Em meio a tanto ruído, emerge o sustenido, acalantando a estranheza de fora e de dentro através de uma estufa, que ajuda a cultivar um outro registro da cognição.
Eu não sou só eu em mim cria curto-circuito em um cenário contemporâneo não só da dança, mas também no de outras linguagens artísticas de um modo geral. As faíscas lançadas espalham-se para muitas direções, mas para que elas consigam queimar a caretice estética dominante, seria necessário não apenas que este trabalho se apresentasse mais e em outros lugares, como também que os incentivos a pesquisas como esta, que rasgam a linguagem virando-a do avesso, fossem criados, mantidos e continuados.