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Bactéria Magnífica, de Flavia Pinheiro

Por: Rodrigo Monteiro
outubro - 2023

Trecho de Organismo, de Décio Pignatari (1960)

 

AERÓBICAS

 

Entremos na metáfora de Bactéria Magnífica, espetáculo de Flavia Pinheiro, que também compartilha a cena com Rodrigo Batista, Rafael FX e Tom Oliver Jacobson. Coloquemos, portanto, sob a lentes de um microscópio (instrumento supostamente inventado no final século XVI por um holandês, Hans Janssen), um trabalho de dança nascido no século XXI, a partir de experimentos artístico-laboratoriais entre Brasil e Holanda. Nesta análise que não se resume somente ao nível micro, convoquemos brevíssimas ponderações de um cientista contemporâneo que considera a cultura de bactérias uma antecessora dos processos culturais de nossa espécie, o português António Damásio (a partir de seu livro: A estranha ordem das coisas: as origens biológicas do sentimento e da cultura, de 2018).

De um modo semelhante à apresentação de Bactéria Magnífica, apresentemos, primeiramente, um panorama da presença desse tipo de vida - das bactérias – em nosso planeta.

Seres resistentes, resilientes e persistentes, estão no mundo há mais tempo do que qualquer outro ser vivo; são, aliás, responsáveis pela evolução de praticamente todas as outras espécies. Já presenciaram surgimentos e extinções, e muito provavelmente continuarão existindo mesmo depois que quase tudo acabar. Em busca da simbiose para manterem-se vivas e perpetuar não apenas a vida delas, mas também a vida de uma forma mais ampla, elas hospedam-se em organismos inteiros, fazendo de um corpo o seu próprio universo. Por exemplo, cada organismo humano tem dez vezes mais células de bactérias do que de células humanas. Apenas no intestino, há cerca de cem trilhões de bactérias, sendo que, no restante do corpo, a média é de dez trilhões de células humanas. Como afirma a bióloga Margaret McFall-Ngai (citada por Damásio), as plantas e os animais são somente um verniz do mundo microbiano.

A sobrevivência desse ser ao longo dos bilhões de anos justifica-se, em grande medida, a um comportamento espontâneo, que, por ser praticamente automático, não recorre a sistemas morais – estes que foram formulados em organismos mais complexos, capazes de criar representações do mundo através dos sentimentos. Diante dessa verificação, voltemos à dança de Bactéria Magnífica, para que dela seja possível extrair alguma amostra, algum substrato que mostre que talvez seja necessário retomar a espontaneidade do gesto de criação, ao invés de enquadrá-lo nas modulações morais tão presentes em nosso tempo.

Assim como a vida, que para perdurar e prevalecer, necessitou e continua precisando ser criativa, as composições de dança precisaram, ao longo de toda a sua história cênica, não apenas preservar códigos dados ou seguir as condutas em voga, mas também ousar e criar novas gramáticas. Bactéria Magnífica sinaliza essa característica evolutiva, além de posicionar-se na contramão de um fluxo quase que único, para o qual as criações de dança mais recentes têm se destinado. O trabalho de Flavia Pinheiro experimenta, ao invés de se conduzir por regras já fixadas; ao ousar em um ambiente onde atitudes como esta são cada vez mais raras, coloca-se em um estado de vulnerabilidade. E, assim como outros experimentos – da vida e da arte –, produz resultados inusitados, que, para além de agradar ou não, proporciona algum tipo de movimento.

As bactérias magníficas resistem ao antibiótico, mas a resistência em questão não faz com que elas fiquem simplesmente imunes; pelo contrário, é na tentativa de buscarem permanecer juntas que elas seguem existindo. Nesse cenário, a única imunidade em questão parece ser a nossa, dos espectadores, que, diante de muitos outros trabalhos, parecemos já acionar o botão automático da apatia, para simplesmente aceitar e concordar com os imperativos disparados em cena.

Nos tropeços ou na busca por se adequar a um ritmo, Bactéria Magnífica propõe aeróbicas, exercícios que tentam oxigenar e fazer brotar a vida. Aliás, brinca também com a possibilidade de riso, algo que à vida leva vigor. Em uma referência à imagem que abre este texto – um poema concreto de Décio Pignatari, de 1960 –, o propósito final do organismo é a busca pelo prazer. E prazer, neste caso, é a chance de replicar-se acompanhada da sensação de bem-estar. A proposta de Flavia Pinheiro, neste sentido, de algum modo dá a oportunidade de que ideias sejam reproduzidas através de algo que provoca uma boa sensaçção.

Por fim, retomando as discussões sobre bactérias e células, estas, de modo geral, desejam durar, projetando-se em um futuro que não se sabe ao certo qual será. Há situações de doenças específicas nas quais, no entanto, a própria célula implode – reação chamada de apoptose. Bactéria Magnífica apresenta seres que, apesar de abatidos pelos antibióticos que tentam retirá-las de cena, insistem em permanecer. No contrafluxo de algumas outras propostas, que às vezes produzem a própria apoptose simplesmente porque parecem ter desistido de buscar por uma vitalidade sígnica, as bactérias magníficas seguem tentando se mexer, mesmo que de um jeito torto, grotesco, torpe e sem compasso. Aonde isso vai dar, não se sabe, mas muita coisa vale para que a morte celular programada seja adiada o máximo possível.

 

 

*Além das ignições despertadas por Bactéria Magnífica, este texto também dá vasão a algumas discussões experimentadas no curso de Dramaturgias do Corpo, ofertado pelo autor na Escola Livre de Dança de Santo André, no segundo semestre de 2023.

 

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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