Contra a inércia no coração
A apatia, sentimento que desmobiliza os desejos e a vontade de transformação, parece um imperativo quase imperceptível dos nossos tempos, mas que, gestada continuamente na vida cotidiana, promove sintomas tão visíveis quanto o mais sublime alvorecer ou o mais melancólico dos crepúsculos. Ela gera incredulidade, asfixia, estagnação e interrupções homeostáticas não apenas na regulação, mas sobretudo nas possibilidades de projeção da vida. A apatia é, portanto, uma forte tecnologia, que entra no íntimo do comportamento, naquele lugar onde um propósito é germinado e cultivado, para, então, poder dissimulá-lo.
Da mesma maneira que a falta de sabor e vontade do mundo se manifestam no gesto, é também nele que se comunicam e se movem as latências de uma urgência. Bolero, dançado por Mauricio Flórez e coreografado por Luis Viana, destaca-se como uma dessas vontades de insurgência: não daquelas que têm o selo da manifestação na vitrine do que é apresentado; mas sim, daquelas que se rebelam quase que pela implosão, quando o que está fora volta-se para dentro, consumindo a fraqueza através da transmutação do habitual. Bolero faz uma combustão do que está fraco em termos de tônus e de tonalidade, e traz à tona a precisão e a potência de uma comunicação que acontece nas veias da fragilidade.
Em cada passo proferido por Flórez, há uma escolha orquestrada para que os contornos e as intensidades se costurem sensualmente. O sensual, com isso, não se limita à adjetivação, isto é, a qualificação de alguém ou de algo, pura e simplesmente, pela sua condição de ser. Mais do que colocar-se como condição dada, é a ação que promove, em seu próprio agenciamento, no ambiente onde está e com as pessoas que ali estão, a qualidade do sensual. Sensualmente, então, Bolero instiga a criação de uma tecedura, cujo tear só se ativa à medida que nele é empregada a precisão de cada gesto-emoção.
Flórez cria focos com as mãos, que, ao se enredarem, estufam pequenas atmosferas entre uma palma e outra. Ora mais ágeis, ora em tempos mais delongados, o corte que as mãos fazem no ar empurram pequenas quantidades de matéria, e que são o suficiente para reter, dentro de cada coração, o necessário para uma nova oxigenação. Assim também acontece com o tracejar dos movimentos das pernas: desenham-se chicoteamentos em estacatos, que ornando ou não com os tempos de mudanças das mãos, geram pequenos rodamoinhos no caminho que se desenha no chão.
Os minutos que dão a duração de Bolero, apesar de parecerem curtos para o tempo cronológico, são o bastante para condensar-se enquanto poesia. Não há excessos; e a concisão talvez seja, ao mesmo tempo, o desafio e a riqueza da dramaturgia do trabalho.
Na duração de Bolero, o que perdura são os ânimos de uma passagem, que pode ser aquela que se dá enquanto ritual (a exemplo do bolero dançado por Sylvie Guillem, na virada de 2015 para 2016, e que fechava um ciclo cênico daquela dançarina); ou aquela que se propõe a ser apenas a do cotidiano, em que a intenção não é outra que não a de fazer passar os fluxos da vida. Seja em uma ou em outra dessas passagens, Flórez proporciona não somente a continuidade de Bolero de Ravel – já dançado por ícones como Jorge Donn, ou coreografado por Maurice Béjart –, como também faz perpetuar a potência de uma memória fabulada, que se construiu e se constrói através da materialização, em dança, de imagens, de relatos e de cartas – todos estes, elementos que fizeram parte dos caminhos de composição de Bolero.
A partir de citações que remetem a uma historicidade, tais como os gestos e passos que rememoram, por exemplo, Vaslav Nijinski, Flórez dá complexidade à criação em dança, porque, além de honrar e valorar suas referências, coloca-as também em um movimento que, de fato, faz mover. Há um cuidado visível nas escolhas, nas parcerias, nos recursos e nos elementos usados. Tudo aquilo que está em cena constitui-se como uma distensão do carinho de cada decisão. Distensão porque, é no corpo de Flórez onde se torna presente – naquele momento e naquele lugar – uma amálgama de elementos que se propõem a significar.
Se é principalmente através do gesto que é possível introjetar a apatia, é também através dele que o pensamento e o comportamento podem ser desestabilizados. Do mesmo modo que os assombros do mundo viram corpo e encobrem a esperança de uma ação, é também a partir de alguma ação que se dá a imanência da transformação. Bolero coloca-se como uma obra que, em pouco tempo, faz latejar a radicalidade da existência, o que dá luz à efemeridade, à fragilidade e à força da vitalidade; golpeia no íntimo, e dele faz emergir uma aptidão para afugentar a inércia do coração.