com: Carolina Canteli, Dani Moraes, Felipe Teixeira, Gustavo Cabral, Liana Zakia Martins, Maria Basulto, Mariana Molinos e Mauricio Florez.
Movediços
Ralentar o tempo e dilatar a possibilidade de presença no espaço são tentativas que, em diferentes filosofias e práticas, buscam promover condições para que o corpo possa estar, de fato, imerso nas condições reais e concretas que o cercam. Não é novidade que, nos atuais cenários metropolitanos, imperam o excesso, o ruído e o efêmero. Tampouco são novas as deturpações e as inversões que esse mesmo cenário promove quando, por exemplo, fabrica e comercializa uma ideia de silêncio, para que se possa encontrar uma suposta paz interior que é associada à resiliência e à resistência contra o caos informacional produzido. Dá-se o veneno para que dele próprio seja criado e vendido o remédio.
Hiato Expandido, com concepção de Felipe Teixeira e Mariana Molinos (FTMM), e com a participação de mais seis artistas (Carolina Canteli, Dani Moraes, Gustavo Cabral, Liana Zakia Martins, Maria Basulto e Mauricio Florez), investiga uma espécie de afundamento do corpo, do ritmo, do local e do contexto. Intervenção apresentada no Sesc Avenida Paulista, Hiato Expandido parece reativar, no momento e nas condições do agora, propostas artísticas que se enveredaram por um caminho que buscava alargar as percepções e as relações entre o corpo e os espaços da cidade.
Na dança, dentre os muitos casos, talvez os mais icônicos sejam as experimentações propostas pela Judson Dance Theater, que, na década de 1960, na cidade de Nova York, explorava a desespetacularização do movimento dançado a partir de gestos, roupagens e locais que não eram outros que não os do próprio cotidiano. Lá, a intenção talvez fosse a de desestabilizar o virtuosismo não apenas de uma cidade frenética, mas também do modus operandi da percepção que, ao invés de buscar apreender aquilo que estava diante dela, fantasiava e se enganava pelos simulacros de uma indústria cultural em plena ascensão. Agora aqui –, não mais com as ações da Judson, e sim com as de Hiato Expandido –, para além de algumas parecenças na proposta, há uma atualização no que diz respeito aos desafios.
Na atualidade contemporânea do contexto, o show tomou dimensões catatônicas. Mergulhados em uma atmosfera de informações, dados, imagens, vídeos e algoritmos, os corpos de agora, mesmo quando aparentemente contemplam algum momento de quietude, estão, em muitas das vezes, curtocircuitando-se. É aí em que se encontram as atualizações dos desafios para Hiato Expandido, já que a experiência da desaceleração, nos dias de hoje, exige um mergulho bastante profundo em águas cada vez mais turvas e sorrateiras. E nessas mesmas águas vive uma nova espécie de Monstro Espetáculo. Agora, fortalecido e atualizado, ele tem a beleza e o encanto de uma sereia.
O trabalho de FTMM coloca-se como prática movediça, de afundamento sutil – afundamento não em um contexto, mas sim, de um contexto. Ou seja, não se trata somente de um conjunto de movimentos que estão apenas se desacelerando ou encontrando outros apoios possíveis, como se estivessem buscando apenas em si um apaziguamento do mundo ao redor; mas também – e provável que principalmente – estão abrindo pequenos buracos para que a superfície possa conceber a possibilidade de, assim como acontece com uma terra movediça, engolir a si própria. Não cabe, certamente, apenas a Hiato Expandido tal proeza, haja visto que, infelizmente, a superficialidade da superfície tem, incongruentemente, criado cascas grossas – característica esta que faz com que as breves brechas sejam rapidamente envernizadas. Neste cenário, o trabalho faz atravessar sutilezas, que têm forte potencial de, aos poucos, semear ervas daninhas para penetrar solos tão áridos como os de cidades grandes e agitadas.
Diante do mar de concreto das grandes metrópoles, há de se proporcionar momentos em que uma outra experiência do concreto possa emergir: aquela que o cientista cognitivo Francisco Varela (1946-2001) chamara de reencantamento do concreto*. Segundo Varela, é no presente imediato que o concreto e o factual realmente vivem. Há, entretanto, uma estrutura bastante frágil do presente, que é o tempo todo bombardeada por representações que promovem uma distância constante das factualidades do momento (e os cantos sedutores do novo Monstro Espetáculo povoam tais representações). Para aquele estudioso chileno, há situações específicas e raras em que acontecem o que convencionou como colapsos. Isto é: oportunidades para que a relação entre o corpo e o mundo seja criada no momento exato da experiência, e não transplantada de qualquer situação a priori. O colapso enquanto operador cognitivo seria, portanto, uma estratégia a ser cultivada e, assim como qualquer outro cultivo, uma prática que requer paciência, dedicação, responsabilidade e cuidado.
Hiato Expandido, na difícil atualidade que precisa atualizar as complexidades das diversas facetas do Monstro Espetáculo, dá continuidade às tentativas de afundamento de contextos e de criação de colapsos. Chama a atenção para o fato de que se colocar diante do que é concreto demanda uma prática de outras virtuosidades, menos espetacularizáveis e mais palpáveis, para que, com isso, seja possível despistar os cantos hipnóticos que nos atordoam, e que estão presentes também em situações em que aparentemente há apenas o silêncio.
*O Reencantamento do Concreto é um texto que se encontra na edição Cadernos de Subjetividade, organizados pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, e publicados pela parceria entre as Editoras Hucitec e EDUC, em 2003. Francisco Varela, ao lado de Humberto Maturana, foi uma importante referência da segunda metade do século XX para os estudos das ciências cognitivas. Varela e Maturana contribuíram significativamente para os estudos dessa área, bem como para a formulação do conceito de enação, que traz à luz a importância da relação entre corpo e ambiente nos processos de aprendizado e de produção de conhecimento.