Performance apresentada dentro da programação do Circos: Festival Internacional Sesc de Circo, no Sesc Pompeia, nos dias 21, 22 e 23 de junho de 2023.
Cuir, ou aquilo que não se define
Na maioria das vezes, quando algo nos é prometido, esperamos que a realização dessa coisa corresponda o próximo possível às nossas expectativas. Casos como esse acontecem, por exemplo, quando vamos assistir a um espetáculo de algum artista que gostamos muito, justamente por já saber sobre a qualidade daquilo que essa pessoa tem a oferecer. A apresentação de Cuir, criação de Mika Lafforgue, Arno Ferreira e Gilles Polet, e interpretada por estes dois últimos, lida, no entanto, de outras maneiras com essa questão: não apenas por estar dentro de uma programação de trabalhos de circo (Circos: Festival Internacional Sesc de Circo) – o que, de algum modo, já faz com que uma imagem mais tradicional dessa área venha à mente; mas também porque as temáticas e as escolhas dramatúrgicas apresentadas mostram-se, elas mesmas, como um convite para lidarmos com as ambivalências de nossas próprias expectativas.
Em termos de elementos utilizados em cena, e que guiam nossos imaginários para um contexto específico – no caso o bondage, a dominação, a submissão e o sadomasoquismo –, Cuir retrata dois homens em uma relação que poderia ser interpretada à luz do homoerotismo desse universo. Eles se apoiam, sobem, montam um no outro. Batem, se jogam, mas também se abraçam, secam o suor deixado em seus corpos e no chão. Assim como tal universo sugere, as imagens de prazer são combinadas à experiência da dor, sendo que os limites entre esses campos ficam difusos e imprecisos.
Adentrando no campo dos sentimentos e das emoções e indo um pouco mais a fundo para tentar assimilar melhor como esses fenômenos acontecem no corpo, é possível compreender as emoções como imagens mentais que criamos, o tempo todo, das representações das mudanças de estados corpóreos. Uma situação que faz com que haja enrubescimento da face e a excitação dos poros da pele, situação esta que poderia ser, por exemplo, um susto abrupto ou uma experiência sexual, dispara representações momentâneas das condições fisiológicas em que nosso corpo se encontra naquele momento. Enquadrada dentro desse entendimento, as emoções são apenas o meio do caminho para a constituição dos sentimentos, estes que seriam nada mais do que a capacidade consciente de mapear e nomear as mudanças dos estados do corpo. Por exemplo, os sentimentos de alegria ou de tristeza são circuitos já reconhecidos e classificados de caminhos corpóreos construídos ao longo das experiências da vida. Assim como diversos sentimentos, a dor e o prazer envolvem uma complexidade de elementos em sua constituição, mas, talvez, consigamos diferenciá-los de muitos outros porque podemos sentir seus efeitos de uma forma quase que imediata no corpo.
Neste sentido, é possível especular que Cuir desperta – em quem faz e em que vê – não apenas um único sentimento, mas algumas ambivalências entre sentimentos, a exemplo da própria dor e do prazer, além de outros que são caros à nossa espécie, como a empatia, a compaixão e a solidariedade. Na empatia, diante do prazer ou da dor de um semelhante, colocamo-nos em seu lugar não como extensão de nossos desejos e espelhamento de nossas identidades, mas sim enquanto mapeamento radical de uma diferença ativada em nós mesmos. Em gestos de compaixão, almeja-se, de modos bastante amplos, amenizar ou pôr fim no sofrimento de alguém, o que, aliás, pode enfrentar muitos ditames éticos. Atos de solidariedade convocam a não indiferença diante da dor alheia, a ponto de querermos, no fim, compartilhar o que for possível para diminuir o tormento de alguém. Todos esses são sentimentos complexos, que acionam emaranhados de memórias e de estados afetivos que nos conduzem a um momento de decisão em resposta a eles. Os sentimentos são, com isso, representações que convocam ações, e estas, por sua vez, criam um outro encadeamento de representações.
Cuir parece uma proposta que explora esse ciclo, já que, diante da dor-prazer consensual de dois corpos em cena, os gestos que emergem levam à produção de imagens visuais, mas sobretudo de estados corporais, que movimentam ações diversas. Estas podem ser desde aquelas que são realizadas durante a performance, como a exploração de apoios inusitados para se sustentar e andar em cima do/junto com o outro, até as que ativam, no público, inquietações pós-espetáculo, mas que foram germinadas na apresentação.
Em termos dramatúrgicos da execução de movimentos, há também uma ambivalência entre a precisão e o risco. Usualmente, em muitos números acrobáticos de circo, o risco é o vetor central na configuração da cena, já que, mais do que qualquer outro elemento, é ele que guia nossos impulsos internos que geram o sentido daquilo que se testemunha. E, para que o risco ainda permaneça dentro do limite máximo da segurança, é imprescindível que haja, também, o trabalho de precisão. Passado um certo limite, a precisão deixa de ser exata e adentra no campo da overdose. Por outro lado, se a dose for insuficiente e não alcançar os valores ideais, não se encontrará o tônus necessário para que nem o mínimo consiga existir.
Em Cuir, quebram-se expectativas quando a comunicação que se desejava encontra ressonâncias no inesperado. Não se trata, portanto, de contemplar a virtuosidade – e a virilidade? – de forma habitual, mas sim de dar a si a oportunidade de lidar com a falha e com o silêncio, de modo que sejamos guiados praticamente pelo esmaecimento dos sentimentos. Isso, quase que paradoxalmente, é o impulso para se encontrar algo outro.
Os pares dor/prazer e precisão/risco são temática e cenicamente combinados e explorados a todo momento – o que demonstra uma coerência de composição em tempos em que, cada vez mais na cena, se diz uma coisa, mas se faz outra. No trabalho, os valores opostos que coabitam um mesmo fenômeno – qualidade sui generis da ambivalência – são também investigados e levados, eles próprios, aos seus limites, de modo que outras combinações e arranjos sejam tangenciados. As ambivalências pululadas em Cuir abrem-se, no fim, para as próprias ambiguidades: aquilo que pode ter mais do que um sentido ou significado. De certa maneira, a experiência voyeur acionada por Cuir coloca-nos não apenas diante de gestos e sentimentos que se opõem e se complementam, mas também das ambiguidades e das nossas incapacidades de lidar com aquilo que não se define e que, mesmo assim, não se limita a se e a nos movimentar por conta disso.