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ENCANTADO, de Lia Rodrigues Companhia de Danças

Por: Caio Paduan
janeiro - 2023

OUTRO SER: EIS A QUESTÃO

A palavra ENCANTADO pode ser usada de duas maneiras: tanto como um adjetivo, atribuindo qualidades a alguma coisa, quanto como um substantivo, dando nome a um determinado ente ou fenômeno. É na exploração e mistura dessas duas possiblidades que se articula o sentido do novo espetáculo da Lia do Rodrigues Companhia de Danças nomeado por essa mesma palavra: ENCANTADO – um nome que parece brincar com essa mesma ambiguidade; seria ele um adjetivo ou substantivo? E a que ele se refere?

É fácil pensar nos sentidos de ENCANTADO como adjetivo – esse uso da palavra é o mais comum em nosso cotidiano. A palavra nos remete imediatamente a qualidade daquilo que nos maravilha e possui alguma espécie de aspecto mágico - um espetáculo encantado, uma estória encantada, uma pessoa encantada, um príncipe encantado... Cada um desses usos nos remete a diferentes contextos sempre associados, de forma mais ou menos direta, à ideia de magia. E o fundamento da magia tem relação com a realização de algo impossível ou, pelo menos, de algo que contraria as regras do que nos parece mais natural. E daí nasce o nosso maravilhamento.

Uma das manifestações características de fenômenos mágicos, que tem sempre grande impacto sobre nossa percepção e imaginação, são as mudanças de forma, as metamorfoses. Talvez uma das metáforas mais utilizadas em nosso idioma – um tanto quanto clichê, sejamos francos – é a transformação da lagarta em borboleta. A espera no casulo que produz uma espécie de milagre e reviravolta em sua condição: uma transformação que não apenas remete a uma liberdade por meio das asas, mas também a revelação de uma beleza inesperada, uma mudança tão radical e surpreendente que carrega consigo algo de mágico e, por consequência, encantador. Ainda que possamos explicar os processos de metamorfose por bases científicas, é difícil não se deixar levar pela impressão que se aviva em nós ao observar as mudanças da lagarta em seu casulo.

É isso que vivemos no espetáculo ENCANTADO. Se definirmos que se trata de uma coreografia com algo de encantado (um adjetivo) é porque temos a impressão de que nela se coloca em processo a feitura de algo mágico. Nisto reside o assombro diante dessa dança: tudo está em transformação o tempo todo. Assistimos a um processo altamente criativo de mudanças de forma e relações impossíveis que se manifestam e desaparecem em constante fluxo. Mas não estamos diante de qualquer tipo de transformações. Não é apenas a já esperada lagarta que vira borboleta. Figuras impossíveis, figuras míticas, figuras curiosas, figuras engraçadas e até mesmo figuras do mundo pop, dão lugares umas às outras num processo inestancável de permutações. Somos testemunhas de possiblidades e arranjos impossíveis que se atualizam a cada segundo.

Nada disso é, como se costuma dizer, abstrato. Tudo é meticulosamente orquestrado – leia-se: materialmente orquestrado – uma marca da direção cuidadosa de Lia Rodrigues. Somos introduzidos, no início do espetáculo, ao desenrolar de um tempo mais vagaroso. Tudo se apresenta com tempo suficiente de ser apreciado e mover nossa percepção e ideias, enquanto, ao mesmo tempo, está a ponto de desaparecer e se transformar. E, neste sentido, cada segundo é precioso. No momento em que se coloca em andamento, a passagem do tempo na coreografia se apresenta como uma aventura: o que poderá aparecer e desaparecer está fora do nosso controle e da lógica cotidiana. De certa forma, a moral, o hábito e os bons costumes também ficam todos suspensos, pois a feitura da magia não espelha a ordem mais banal e cotidiana das coisas, mas estabelece relações criativas, surpreendentes, impossíveis.

Os únicos materiais em cena, tecidos coloridos e estampados, são os elementos centrais nestes processos de transformação incessantes. É por meio deles que o grupo de dançarinos criam formas e figuras – experimentando e destacando a maleabilidade, cor e textura desses tecidos – e fazendo com que a dança evocada seja essa metamorfose constante. Os dançarinos, portanto, passam a ser os condutores deste processo mágico de velar e desvelar, baseado num processo de animação (no sentido de animar, dar vida).

Essa animação ganha uma conotação especial no desenrolar da coreografia. Ao mesmo tempo que permite aos dançarinos realizar uma evocação, pois traz ao olhar da plateia as imagens dessas figuras, também é para eles um processo de troca de peles constantes, exigindo que a cada vez eles precisem ser inteiramente outros. Assim, vemos surgirem gestos, sons e danças de cada uma das figuras evocadas, fazendo do tornar-se outro – ou ainda de revelar das outridades possíveis em si mesmo – um dos elementos fundamentais do processo mágico de ENCANTADO. A insistência e elaboração dessa ideia coreográfica vai nos convidando a traçar relações com diversos outros campos e ideias.  

No campo do pensamento, a questão da alteridade está presente desde o perspectivo ameríndio, atualíssima teoria antropológica de Eduardo Viveiros de Castro, que inverte totalmente nossa apreensão mais comum sobre a relação natureza e cultura, até os momentos cosmogônicos retratados em diferentes mitologias em que as misturas entre humanos, deuses e animais acontecia e se perpetuava sem nenhum limite. Também é possível traçar relações muito diretas às propostas do feminismo a la ciborgue de Donna Haraway. A possibilidade de conexão com esses assuntos esse é outro feito de ENCANTADO: sua mágica não se restringe a causar um impacto estético sem que nenhuma ideia reverbere ao fechar da cortina. Todas as texturas oferecidas aos nossos sentidos articulam temas que não apenas falam de nosso presente, como traçam sentidos e ideias que reverberam aspectos de diferentes campos do pensamento. Outro ser, eis a questão.

Até aqui nos guiamos apenas pelas possibilidades que nos ofereceram a palavra como adjetivo. Mas e como substantivo? Um uso menos comum e ligado a contextos específicos, a palavra ENCANTADO  possui um significação não muito precisa para muitos. Segundo uma definição de dicionário, um ENCANTADO é um ser que parece animado forças sobrenaturais e que habita ou possui alguma conexão com contextos sagrados. É exatamente neste sentido que as figuras evocadas em ENCANTADO podem ser denominadas “os encantados”. Não apenas pelo processo de animação mágica ao qual já nos referimos, mas pelas próprias figuras evocada. Cada uma delas apresenta características, gestos danças que reúnem e abarcam contradições, paradoxos ou contrassensos que deslocam nosso entendimento entre a surpresa e o espanto. Espanto esse causado pela percepção que estamos diante de figuras que não pertençam exatamente ao nosso mundo, mas a outro lugar. Ou ainda, a outra possibilidade de mundo.

Os encantados (substantivo) nos desafiam a imaginar outras vidas possíveis. Ainda que possamos ligar essa vida a mundos imaginários (como no caso da sereia e outros seres mitológicos), as evocações nos fazem pensar em alquimias que questionam nossos modelos de gênero, sexualidade e conduta – por exemplo, na figura em um dos primeiros momentos do espetáculo com muitas características masculinas, mas uma barriga gestante.

Assim, o espetáculo ENCANTADO (adjetivo e substantivo ao mesmo tempo) parece nos fazer um convite a meditação sobre a sabedoria e valor da mudança como um processo fundamental da própria vida. Ela parece celebrar, de maneira esperançosa, a potência da vida em suas dimensões anárquicas e criativas. O tecer da vida como um conjunto de transformações surpreendentes da quais podemos participar ou apenas sermos espectadores, mas que inevitavelmente são inestancáveis. Nada mais acertado para nosso contexto pós-pandêmico: em tempo de grande dificuldade, em que fomos obrigados a nos adaptar às terríveis condições que foram impostas a muitas áreas – Educação, Cultura, Patrimônio, Economia, Direitos Humanos, etc –  pelas arbitrariedades de um (des)governo, foi a própria possiblidade de outros modos de existir que nos pareceu ameaçada constantemente. ENCANTADO celebra as potências incontroláveis da existência e nos faz sorrir para beleza das mudanças.

Caio Paduan

Ator e professor nas áreas de Teatro e Dança. Praticante de Kinomichi desde 2014. Leitor curioso das áreas de Sociologia, Antropologia e Filosofia, com especial interesse pela Escola de Kyoto, as obras de Martin Heidegger e filósofos da Ontologia Orientada aos Objetos (OOO). Também gosta muito de Literatura e Poesia – em especial as obras de Yukio Mishima, Virginia Woolf, Dora Ribeiro, Sophia de Mello Breyner, Octavio Paz e Federico Garcia Lorca. Ouve muita música – ainda coleciona CDs! – e assiste menos filmes do que gostaria, apesar de assinar muitos streamings. Acredita que reler, reassistir e revisitar as coisas que gosta é fundamental. Tenta sempre fazer mil coisas ao mesmo tempo. Às vezes consegue.

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