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Les Poupées, de Marta Soares

Por: Rodrigo Monteiro
setembro - 2024
Foto: João Caldas
Foto: João Caldas

Uma diferença que faz diferir

 

Debates acerca de violências diversas escoam atualmente pelos mais diferentes meios. Diante de um mundo extremamente desigual, e que tende a alargar os abismos, é fundamental que alguns alertas sejam constantemente ativados. Exemplos deles são: os impactos sociais, econômicos, culturais e ambientais resultantes dos processos coloniais; questões relacionadas às violências raciais e aos crimes de ódio contra corpos dissidentes; feminicídios e a expropriação da vitalidade e da subjetividade. Há, todavia, um perigo latente no escoar dessas e de outras questões, qualificando-as, muitas vezes, mais como um gesto de ecoar pressupostos esvaziados de uma real latência crítica e política.

Em Les Poupées, Marta Soares consegue abrir um feixe que joga luz em todos esses debates, mas com uma peculiaridade necessária: ao invés de tangenciá-los a partir de uma afirmação assertiva, que é uma característica do eco, aborda-os através de pulsações que se constituem enquanto estados corporais. É importante sempre nos lembrarmos de que, não só na História da Dança, mas também nas histórias de linguagens artísticas diversas, houve uma gama de explorações estéticas que investigaram a capacidade comunicativa para além de um discurso verbalizado ou racionalizável acerca de um problema. Afinal, lidar com o que não se consegue dizer, e que por isso apenas pode ser comunicado através da esfera do sensível, é um dos grandes desafios, mas também a fonte de ignição de experimentos artísticos variados. Les Poupées, felizmente, faz lembrar que essa não é somente uma opção, mas sobretudo uma urgência nos tempos atuais.

Inspirando-se em fotografias de bonecas feitas pelo surrealista alemão Hans Bellmer, e em escritos de Georges Bataille (em especial em seu conceito de informe), Marta Soares, assim como esses artistas-pensadores, busca desestabilizar algumas categorias opositivas, a exemplo dos pares dentro/fora, homem/mulher, animado/inanimado, morto/vivo e figura/fundo. A desestabilização em questão, seguindo a coerência dramatúrgica, apesar de utilizar-se de figuras que remetem a imagens simbólicas de cada um desses universos, toma-as enquanto ponto de partida para que outros estados corporais sejam experienciados. Ou seja, não se trata de tentar representar ou encontrar um meio termo de cada um dos pares, como se fosse possível alcançar uma síntese ou acordo possível dessas combinações; nem de se transitar por ou apontar para algo que pudesse ficar entre eles. Não se trata de achar o meio ou a média, já que essas seriam saídas relativamente previsíveis e simplificadas de questões que, certamente, são mais complexas. Parece que são, justamente, as complexidades das cartografias contemporâneas que vibram nas indagações e nas criações de Marta Soares.

É por isso que, por mais que a artista desenhe figuras ao longo de sua coreografia, que ora se assemelham a uma noiva, ora a um ser com quatro membros inferiores, o que está em jogo não é o contorno ou a limitação de uma imagem. A pulsação presente no movimento – seja naquele mais visível e compreendido como um “passo de dança”, seja no menos visível, mas que ainda assim acontece mesmo quando parece que nada acontece – é crucial para que a figura fulgure: relampeja-se vida no inanimado e salienta-se o brilho, mesmo que provisório, na opacidade de uma superfície.

Os passos escrutinados em Les Poupées articulam uma lógica de desarticulação, não apenas nas silhuetas dos movimentos, nos pontos de apoio do corpo e nas organizações cênicas, como iluminação, trilha sonora e objetos; mas também, e sobretudo, na própria costura e condução da linguagem. Para que as oposições sejam implodidas, de modo que dentro e fora, ao invés de se apresentarem como pares opositores, possam ser experienciados e concebidos como gradações e variações de um mesmo fenômeno, desarticula-se, articuladamente, um estado de corpo que é aparentemente estável. Dito de outro modo, é a partir de uma intenção guiada por um propósito dramatúrgico – e, portanto, articulada –, que a desestabilização do que se mostra como fixo abre margem para que o sutil possa vibrar.

Retomando o ponto inicial, no que diz respeito a Les Poupées abordar, de outra maneira, questões relacionadas às diferentes violências sofridas (coloniais, raciais, de gênero, dissidentes etc.), o modo como o próprio entendimento de corpo se apresenta faz com que não somente se expanda o espectro da violência (que poderia alongar-se, por exemplo, para: neoliberal, psicossocial, intersubjetiva), como também sejam complexificadas as possíveis rotas de fuga desse cenário. O trabalho convida a pensar, com isso, que não é pela via da identidade fortalecida e do cercamento que se diz comunitário que iremos reparar problemas densos e cheios de emaranhados. Marta Soares não guia sua inquietação em direção à resposta desses problemas; pelo contrário, alimenta-se de uma indagação que gera, em si e em seus trabalhos, uma força que difere através da diferença. Isto é, não se trata da diferença enquanto categoria dada, que pode, inclusive, ser lida à luz da exotização; mas de uma potência que consegue colocar algo em movimento, sendo que esse “algo”, no caso, é quase sempre o próprio corpo e os seus estados perceptivos. A partir e através da diferença, mas sem se estagnar em marcadores estanques, Les Poupées é um estranho que desarticula aquilo que já está banalizado.

Por fim, e não menos importante, é fundamental destacar que a obra em questão não é uma estreia. Les Poupées é um trabalho criado há mais de vinte e cinco anos, e que, aliás, ganhou prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), em 1997. A retomada de um trabalho, além de colocar em xeque muitas ações de curadorias que prezam unicamente por novidades, também problematiza o modo como muitas dessas novidades da área da dança têm se debruçado – ou não – sobre questões que assolam o mundo atual, como é o caso das degradações dos corpos por meios das violências já mencionadas. Como colocado anteriormente, parece que entramos em uma fase em que a tônica trabalhada segue apenas o gesto de ecoar: ecoam-se, ecoam-se, ecoam-se murmúrios que, na repetição, parecem perder a gana de algo que não se sabe bem o que é, mas que para o qual são, paradoxalmente, atribuídas diversas certezas. Seguindo com a toada de Les Poupées para que se almeje alguma contramão, vale perguntar: seria uma estratégia evolutiva razoável adotar a diferença não como uma categoria rígida, mas sim como um informe, como uma força estranha que faz mover, para que, quem sabe, consigamos atingir o mínimo de profundidade em uma era dominada pela superficialidade? A provocação dessa pergunta, incitada pela vibração de Les Poupées, também pode ser destinada para o entendimento e para as práticas que têm sido feitas atualmente pela crítica, bem como pelas associações de críticos que atribuem premiações. O papel dessa área, isto é, o da crítica, tem sido enfraquecido no que concerne a alguns princípios fundamentais, e que deveriam, assim como o trabalho de Marta Soares, promover reais estados de desestabilização no cenário contemporâneo da dança.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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