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Memórias para se transformar em flor, de Mauricio Flórez

Por: Rodrigo Monteiro
março - 2024
crédito da colagem: Mauricio Flórez

Flores para oxigenar o gesto de contemplar 

 

Já há alguns anos, parece que a nossa habilidade de contemplar as coisas do mundo e da vida vem se deteriorando, com especial ênfase no desgaste de perceber as pulsões de vida no e do mundo. E, diferentemente da deterioração de algo em si, processo este que, mesmo quando no apontamento para a morte, consegue exalar a beleza do movimento da vida, no gesto contemporâneo de contemplar, já praticamente exaurido, o que sai gradativamente de cena é a capacidade de parar diante de e se atravessar por uma alteridade. Há camadas distintas para que essa barreira cognitiva seja levantada, e analisá-las a fundo demandaria uma longa e profunda reflexão, mas uma delas que merece aqui ser destacada diz respeito ao anestesiamento da própria experiência de contemplar para sublimar.

Memórias para se transformar em flor, de Mauricio Flórez, faz um convite que consegue ser ao mesmo tempo singelo e radical: propõe que a contemplação seja ativada pelo atravessamento das sutilezas e das radicalidades das belezas. Não se trata, portanto, do belo plastificado, que é inerte à pulsação do real, tampouco de um belo plastificável, que poderia facilmente ser congelado e exotizado, mas da beleza enquanto condensação da coerência e da disseminação de vitalidade. 

Diz o trabalho que é através do encontro com a beleza de um objeto que com ele podemos nos comunicar, uma vez que nele terminamos por nos transformar. Mesmo que a transformação não seja integral, há, contudo, a alteração dos estados da matéria, o que faz com que a metáfora se torne em literalidade. Algumas substâncias, por exemplo, conseguem através da sublimação, passar do gelo para o vapor, assim como também podem retornar ao estado líquido via precipitação. Apesar de o elemento ainda ser o mesmo, as suas características e qualidades são outras. Memórias para se transformar em flor liquefaz imagens em corrente sanguínea, sublima o movimento em sonho, solidifica a fabulação em presentidade.

A ação de Flórez é movida pelo propósito do artista de se transformar em flor. Dispõe em cena, para tanto, diferentes objetos, milimetricamente encantados pelos arranjos dos detalhes, e que acionam narrativas e memórias diversas. É o público que escolhe cada cena, e, a pedido do artista, é também convidado, logo no início, a olhar-contemplar cada microcosmo de suas composições visuais. Embora as ignições sejam de ordem autobiográfica, as ações não se encerram no autocentramento - o que diferencia o trabalho de muitas proposições atuais que se limitam a achar que falar de si basta para afetar o outro. Afinal, a proposta está evidenciada desde sempre: o objetivo é transformar-se em flor; mas é também, em alguma medida, desestabilizar no público a ideia de que a possibilidade de fruição se resume ao encontro de algo interior. O interior almejado não está em si próprio, mas em um outro, que, muitas vezes, se presentifica como uma alteridade radical

É com exemplos de importantes figuras da história da dança, como Kazuo Ohno, Vaslav Nijinski e Takao Kusuno, através de memórias ou fabulações dançadas a partir de uma flor (com inspiração em O espectro da Rosa, de Nijinski), ou através de confissões endereçadas em uma carta a uma pessoa já encantada e que segue espalhando sementes (Takao Kusuno), que Flórez, apesar de partir de si, remessa ao outro a própria condição de enfrentamento com a alteridade. É com narrativas e explicações sobre o mundo vegetal, com gestos que figuram jeroky - palavra guarani que, ao mesmo tempo, significa dança e desabrochar-se -, que o movimento transfigura corpos e sementes em seres outros. Flórez fala sobre jeroky, mas deixa vazar por seus poros a potência de transformação através da dança e do pulsar de um broto, o que materializa, dramaturgicamente, a qualidade da ação anunciada por aquela palavra. 

Há também a menção a mitologias, às indígenas e à grega, o que confere uma temporalidade da História para além daquilo que os seus fatos conseguem apresentar. Nesse sentido, o trabalho busca resgatar não apenas a nossa capacidade de contemplar para sublimar, mas também a de imaginar, sobretudo em um mundo em que essa habilidade parece estar sendo cada vez mais enfraquecida pelo dilúvio informacional e imagético que atua sob o registro dos impulsos de comportamentos previsíveis. 

Metamorfoses distintas são citadas com base em bibliografias (como através do livro do poeta Ovídio, do ano 8 d.C., e do livro de Emanuele Coccia, pensador italiano contemporâneo), mas também são testadas em cena. Desenham-se no tônus do movimento, bem como em seu desenlace pelo espaço, pequenas perturbações moleculares, que fazem com que mesmo aquilo que não é apreendido a olho nú seja percebido e fotossintetizado pelos microscópios da inteligência emocional.

O público é também convidado a esgarçar o tempo de olhar para si, quando, ao assistir aos detalhes de uma mão que lentamente se abre, pode notar aspectos e espectros que outrora eram ignorados. Importante frisar que, mesmo o olhar para si é, aqui novamente, um gesto para se lançar ao outro de forma diferente. Não se trata de encontrar uma verdade essencial, nem em si nem no outro, mas de atentar-se para o fato de que, assim como o pulsar de uma mão que se abre, a vida no mundo e do mundo continuará a se metamorfosear. 

Nas variadas combinações possíveis de cada apresentação de Memórias para se transformar em flor, o público, em uma disposição espacial íntima, compõe com o artista uma coreografia que explora o devir flor. Mais do que a ideia de tornar-se flor, o conceito de devir pode ser melhor compreendido como ser atravessado pela flor. Obviamente, como o trabalho mostra e faz, essas instâncias não são separadas, já que para nos transformarmos em algo é necessário, antes, que sejamos minimamente afetados por aquilo que desejamos nos tornar. No entanto, em uma atualidade que desesperadamente precisa se desapegar de noções tóxicas de identidades rígidas e imutáveis, talvez seja propício realçar o entendimento de que mesmo a experiência do tornar-se algo outro não fechará a espiral infinita da transformação, e que, nesse processo, o que estará sempre em jogo é a nossa disposição ética para lidar com os atravessamentos, mesmo quando com alguns deles não nos conectemos por completo. 

Memórias para se transformar em flor pode ser broto de um ciclo botânico e epistêmico, que faz germinar raízes que não se engruvinham, mas que se alongam e fecundam a floresta. Pode ser tecnologia de renovação do ar, que absorve as ignorâncias do coração para transformá-las em oxigenação para a intuição.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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