SIMBÓLICO
Apresentado na data que comemora o 201º aniversário da Independência do Brasil, O Samba do Crioulo Doido não poderia escolher oportunidade mais simbólica para tal. Depois de mais de 4 anos sem poder ser reencenado em território nacional, a performance de Luiz de Abreu, agora interpretada por Calixto Neto, aconteceu um ano depois do bicentenário da Independência, em um momento em que, aparentemente, o Brasil retoma um fôlego cultural para enfrentar a escuridão que se escapou de um armário que teve suas portas arrombadas, e que talvez nunca mais sejam novamente fechadas.
A apresentação ocorreu dentro da programação da 35ª Bienal de São Paulo, cujo mote curatorial desta edição debruça-se sobre as coreografias do impossível. Pois bem, O Samba do Crioulo Doido parece ter vindo a calhar, uma vez que não apenas marca simbolicamente uma série de questões que insistem em permanecer desde a sua criação, em 2004, como também realça aspectos simbólicos de outras ordens.
Primeiro: considerando uma perspectiva de leitura que se dá em evolução desde o contexto de sua criação até hoje, foram diferentes os tempos e os espaços que contribuíram para que camadas de significação tenham sido colocadas, retiradas ou transformadas. Em 2004, por exemplo, apesar do contexto político frutífero para que ideias fossem amplamente discutidas, as questões sobre as violências coloniais não eram debatidas ou trazidas à tona da mesma maneira como são nos dias atuais. Talvez tenha sido justamente a explicitação de tanta violência que, de algum modo, contribuiu para fertilizar todo um campo para a contestação e para a reparação. Fertilizar, contudo, não é um processo que se completa em si para que novos florescimentos possam, de fato, surgir.
Segundo: O Samba do Crioulo Doido é semioticamente simbólico. Trata-se, no caso, de um trabalho artístico que apresenta uma série de representações que já estão bastante estabilizadas, com as quais temos não apenas familiaridade quando vemos ou ouvimos, como também preenchem o nosso imaginário, nos levando, na maioria das vezes, a um lugar quase comum naquilo que diz respeito à conduta da ação: podemos nos indignar coletivamente; podemos, em uníssono, bradar e nos emocionar por razões praticamente semelhantes. Obviamente, em se tratando de um trabalho artístico, o poder de representação de um símbolo, a exemplo das bandeiras ou das músicas que quase são de domínio público, muitas vezes busca colapsar o hábito, que é inerente ao nível simbólico. Ou seja, parte-se daquilo que é comum em termos de significado para que, ao longo do processo, o próprio entendimento do que outrora era óbvio seja desestabilizado. Uma língua comum é falada de início, mas que, ao se enrolar nela mesma, emite murmúrios que engasgam os significados prontos.
Terceiro: para além da performance em si, o contexto em que ela se deu continua, preocupantemente, mantendo níveis simbólicos de hábitos coloniais - estes que, por sua vez, são matéria bruta de O Samba do Crioulo Doido, além do motor curatorial da Bienal em questão. Se não podemos falar de uma obra sem que sejam colocados em jogo a relação entre aquilo que esta obra diz e o modo como ela se apresenta, tampouco é possível compreendê-la e atualizá-la sem que o contexto seja considerado. No mesmo 07 de setembro de 2023, enquanto entusiastas da monarquia, mais cedo, comemoravam a data com coroas de flores levadas ao mausoléu de um antigo imperador; as forças coloniais, que quase sempre são invisíveis, pulsavam em um ambiente que advoga combatê-las. Personalidades das artes e do pensamento progressista, presentes na plateia, abusaram de seus (re)conhecimentos para, por exemplo: furar a fila de um evento organizado por ordem de chegada; entrar antes que o restante das pessoas para pegar os lugares da primeira fileira; guardar assentos em um evento gratuito, no qual não havia distribuição de ingressos com poltronas marcadas.
Dentre os três níveis simbólicos mencionados, e que se dão na relação tanto de dentro quanto de fora do espetáculo, talvez o terceiro, aquele que está no campo do menos óbvio para muitos (a repercussão colonial através da própria ação), seja o mais preocupante na atualidade. Isso porque se trata de um campo em que parece que os problemas já foram resolvidos - ao menos do ponto de vista da análise, da reflexão e do discurso. Fruir os símbolos fortes trazidos por Abreu, e que foram fortemente questionados, sobretudo em um dos eventos de arte contemporânea mais prestigiados do Brasil e do mundo, faz parecer que, de fato, o caminho a ser seguido está bem sinalizado, e que não há qualquer tipo de incoerência entre a postura pessoal e o ímpeto moral correto dessa direção. Afinal, apesar de o mundo lá fora estar todo errado, aqui dentro tenho certeza de que estou no rumo certo. Há, no entanto, uma lacuna imensa entre aquilo que se crê e a ação para que uma ideia possa realmente acontecer. Além do fato de que, para alguns, o que está em pauta é a mera fixação da crença, ou seja, apenas reforça-se aquilo que já se sabe; há também um ponto ainda mais delicado, que compete à cisão entre o discurso e a ação. Tal cisão não fica ilhada apenas no indivíduo que não percebe a sua própria incongruência, uma vez que se espalha através de seus sutis gestos, contaminando negativamente o solo que acredita estar positivamente cultivando.
Se a ignição desta Bienal é coreografar o impossível, muito ainda tem de ser revisto no âmago das pequenas condutas, para que as violências retratadas em O Samba do Crioulo Doido sejam realmente encaradas em sua amplitude, e não apenas naquilo em que acreditamos saber sobre elas.