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MATÉRIA ESCURA, de Grupo Cena 11 Cia de Dança

Por: Rodrigo Monteiro
maio - 2023
foto: Matheus José Maria

NÃO SÃO NOSSAS AS BELEZAS, E SIM DAS PRÓPRIAS BELEZAS

Na cosmologia, a matéria escura somente pode ser inferida a partir dos efeitos gravitacionais sobre a matéria visível, como por exemplo as estrelas e as galáxias. A matéria escura, como também a energia escura, são presenças de uma realidade que insiste, que se força sobre nós, apesar de não conseguirmos visualizá-las. Estima-se, aliás, que a soma entre a matéria escura e a energia escura compõe quase que por completo o conteúdo de massa-energia do universo. De algum modo, é sobre aquilo que não percebemos, e também sobre aquilo que nem mesmo sabemos, que Matéria Escura, do Grupo Cena 11 de Dança, incidiu-se.

Trabalho cênico que também foi exibido de forma remota em todas as suas apresentações, Matéria Escura, quando estava prestes a estrear, em abril de 2020, não apenas se adaptou às plataformas digitais para poder ser veiculado em meio às restrições causadas por uma pandemia, como também pôs-se a experimentar a própria linguagem da interface digital. Diante de uma avalanche de trabalhos que utilizaram as plataformas somente como meios de exibição, o Grupo Cena 11 não ignorou algo que há anos vem pesquisando: as extensões e as distensões da tecnologia. O corpo que se expande através de apetrechos técnicos, e que o faz para criar novas possibilidades de lidar com o mundo, é também o corpo que evolutivamente se altera diante das mudanças tecnológicas, criando, com isso, outros estados de sua própria presença. 

Algo bastante presente em outros trabalhos do Cena 11, as extensões do corpo, como exoesqueletos que expandem braços e pernas, ou câmeras que dão outra dimensão para os olhos, em Matéria Escura parecem cada vez mais afinar-se na forma de um estado corporal das bailarinas. O passo de dança não poderia ser outro que não o de uma percepção extremamente aguçada, encontrada por aquelas que dançam, mas também despertada em todos aqueles que, dentro do teatro ou na frente de uma tela, entram em contato com a obra. A investigação de outros estados corporais é o que move os passos de dança feitos em cena – investigação esta que parece também mergulhar nas mutações de um mundo em colapso. 

O grupo desmistifica uma história: a de que a era do completamente inocente e intocado provavelmente nunca tenha existido. Talvez seja ficção acreditar que haja uma pureza, algo completamente natural na constituição daquilo que é o orgânico da vida. Mesmo as araras, os urubus, os caramujos e os tucanos – todos eles sonora e imageticamente sampleados no trabalho –, e que coabitam em um ambiente que desde sempre está condenado à transformação, são formas de vidas que precisaram encontrar as vidas das formas para, com isso, retardar os seus fins. 

Os meios político, social e ecológico, nos quais nos encontrávamos no período da estreia de Matéria Escura, anunciavam uma catástrofe iminente: o fim de um mundo que, até então, considerávamos conhecer. Pois bem: nunca conhecemos – como acreditamos –, nem este, nem aquele mundo pré-Covid 19. Matéria Escura parece ter criado efeitos gravitacionais sobre a matéria visível que está diante de nós, de modo a relevar, na forma de ciborgues do fim do mundo, alguns limites que o corpo aparenta catalisar. 

O trabalho diz; fala; enuncia. O trabalho profere palavras, que dizem, aliás, que a palavra é osso do pensamento. Repleto de enunciados – isto é, formado por lapsos de linguagem que antecedem a formulação verbal mais explícita –, o pensamento é também o osso da palavra. Um osso que, no entanto, é cheio de fissuras. O pensamento-osso de Matéria Escura, para além de calcificar as questões nele colocadas exclusivamente na forma de palavras e narrativas já dadas, busca expor algumas fraturas. 

Em meio a um mundo em que tudo e todos colocam-se enquanto simulação, é urgente que não calemos os gritos dos fatos, nem que sufoquemos os murmúrios das evidências. Ao combinar a dureza da materialidade com a também dureza da virtualidade, o Grupo Cena 11 expõe à mesa que o chão não é mera aparência; tampouco a extinção, que apesar dos freios que nela são colocados, mostra-se como um ponto-e-vírgula de períodos que não necessariamente levam a um final. A extinção pode ser produzida como algo que é definitiva para uns, como para algumas espécies de animais e plantas; mas semi-provisória para outros, a exemplo da própria humanidade. Por outro lado, aquilo que foi extinto pelo Cena 11 é o entendimento de que o corpo – matéria da/em evolução – permaneça límpido frente às mudanças do mundo. 

Assim como no mundo, onde não existe um fora, também em cena tudo está dentro. Assim como na natureza, na qual o derretimento de uma calota polar impacta severamente a condição climática de todo o planeta, aquilo que está dentro de Matéria Escura, mesmo que seja na parte menos visível da cena, afeta sistemicamente todo o acontecimento. Em um mundo complexo, com problemas que tampouco são simples, o Grupo Cena 11 segue coerentemente com uma dramaturgia que não tenta achatar as amplitudes da realidade para que dela consiga comunicar algo. 

Trata-se de um ritual, do qual não se sai igual. Nele, as complexidades de estados de corpo são ativadas e, por isso, Matéria Escura é, ao mesmo tempo, envenenamento e cura. Alguns dos elementos utilizados nesse ritual envolvem, por exemplo, camadas sonoras que praticamente solidificam as ondas propagadas no ar. Estalactites de som se formam e ameaçam se soltar a qualquer instante. 

Diz o trabalho: “a ruína é meu alívio”. Ruína, por sinal, é o tom vibrado pelo espetáculo, que nos lembra o tempo todo de nosso atual estado de precariedade. Os declínios provocados pelas catástrofes, e que são prenunciados por Matéria Escura, apontam para as ruínas não somente enquanto brigadas daqueles que se arruínam, como também daqueles que destroem e que tentam, a todo custo, predar o planeta. Diz o trabalho: aquele que provoca a destruição, imune não permanecerá, esfacelando-se em seus próprios simulacros e adentrando na escuridão, esta que é uma queda livre para dentro dos olhos.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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