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Você ainda quer lutar comigo?, de Letícia Scalise

Por: Rodrigo Monteiro
março - 2025
Crédito: Giorgio D Onofrio

Uma decisão honestamente tomada

 

Nos variados processos de criação artística, há um momento delicado e crucial que dá o tom de maturidade de uma obra, e que envolve justamente a decisão do que deve e do que não deve ser continuado. No caso, tal maturidade não necessariamente está associada ao tempo da criação, ou à experiência ligada à idade de vida de um ou de uma artista; mas sim, ao estágio em que é possível discernir as coerências que dialogam com as inquietações que estão, de fato, sendo movidas pelo processo. Letícia Scalise, em Você ainda quer lutar comigo?, sinaliza que, na dança, maturidade e materialidade precisam estar intimamente relacionadas, de modo que só é possível concretizar e movimentar uma questão, na medida em que as escolhas são decantadas, transformando-se, assim, em decisões.

Quando uma escolha se torna uma decisão, corajosamente coloca-se para jogo uma ideia, que, agora não mais apenas na esfera íntima da criação, pode ser debatida, refutada, atravessada e transformada. Na decisão, assume-se que o teste, por mais que seja experimental ou suscetível ao erro, é, também, um material que, enquanto processo, pode colocar-se – e colocar-nos – em pensamento. Você ainda quer lutar comigo? é, com isso, um trabalho que, de forma matura e honesta, convida a si próprio a colocar-se em uma esfera rara dos tempos atuais e neoliberais: na arena pública da criação crítica, que se fortalece conforme o tempo da investigação convoca a dialogia (da artista com ela mesma, da artista com os seus pares e da artista com os seus públicos).

Apresentado em um contexto de mostra de processos, na Farofa, Você ainda quer lutar comigo? é um trabalho cênico que vai de encontro com as propostas do evento, que, em sua experimentação curatorial, compartilha hipóteses que demandam formatos outros de exibição. Desta maneira, a curadoria do evento e a dramaturgia do trabalho estão de mãos dadas, pois ambos se sintonizam para sofisticar as decisões publicamente comunicadas.

Na honestidade com a materialidade, Letícia Scalise respeita as qualidades e as singularidades daquilo que manuseia. Para que, por exemplo, um papel seja transformado em uma dobradura, é fundamental ater-se sobre as possibilidades e os limites do próprio objeto. No gesto de dobrar, e que se desdobra em uma figura de um pássaro, Scalise, já no início de sua apresentação, lança um convite para que os nossos olhos irrequietos se acalmem, pois o que está em jogo é o tempo da coisa sobre a nossa percepção, e não o contrário. Algo semelhante acontece com o peso do leque que corta o ar: não se trata apenas de um objeto que, utilitariamente, coloca o ar em movimento; mas de algo que cria atrito e resistência com o seu próprio referencial. Tanto o tempo quanto o vento são agenciadores de Você ainda quer lutar comigo?, porque, ao serem respeitados e modulados em função de um propósito, permitem que o trabalho acesse as reais concretudes desses elementos, colocando-as também em movimento.

Em Você ainda quer lutar comigo? há contrastes, que mais do que realçarem um ou outro extremo, sinalizam que as belezas também residem nas concomitâncias. Um exemplo disso está na leveza do gesto de Scalise, que, por sua vez, consegue tal qualidade através de uma intensa prática que garante força e tônus muscular. A partir de seus treinamentos de Kung Fu, que se mostram na potência da força e da elegância, a artista associa polos que supostamente se repelem, mas que, no fim, são extremamente codependentes.

Seguindo a exploração da força presente naquilo que é frágil, e sustentando a ética da honestidade das decisões, em um determinando momento, Você ainda quer lutar comigo? lança luz sobre a leveza de inúmeras penas que caem. Quando tal elemento com forte associação simbólica é apresentado, em uma cena que funciona quase como um divisor do trabalho, Scalise parece também atingir um ponto de mudança do estado da matéria. Não seria, no caso, um ponto de fusão (quando o sólido se transforma em líquido), nem um ponto de ebulição (quando o líquido se torna gás), mas um ponto de ressublimação, isto é, quando um gás se torna sólido. Na cena em questão, há uma ressublimação poética: as penas que caem condensam e solidificam tudo aquilo que antes estava em estado de ar.

Outra decisão que deve ser destacada e apreciada é a que envolve a exploração das ambivalências. Em diferentes momentos, desde o uso do leque até o uso de uma máscara, Scalise explora as multiplicidades dos significados. O leque – que certamente é leque – pode ser, também, uma espada. Uma máscara cheia de penas, ao cobrir o rosto, indica a representação de um pássaro qualquer, mas também sinaliza uma máscara de luta. Sobre essa decisão, importante destacar: ao mesmo tempo em que as possibilidades de aproximação e de identificação se acionam através do rosto, é também através dele que surgem os afastamentos e os estranhamentos. Enquanto decisão dramatúrgica pautada nas ambivalências, o estranhar e o afastar-se podem ter significativa força política, sobretudo em tempos em que as identidades têm sido esvaziadas de suas complexidades.

Você ainda quer lutar comigo? não nasceu e nem termina com o que foi mostrado na Farofa. Trata-se de um trabalho que parte de um conto que vem sendo gestado há anos pela artista. Atravessou momentos críticos, a exemplo da pandemia de 2020-2022, e continuou sendo explorado em formato cênico. Há, inclusive, a intenção de que se desdobre em uma história em quadrinhos. Novamente, vale reforçar a estreita relação entre as decisões dramatúrgicas colocadas pelo trabalho e as decisões curatoriais realizadas pelo evento, de modo que possamos indagar: qual a importância de trabalhos e de mostras que estão, honestamente, investigando-se enquanto processos?

Em um cenário em que há uma carência de se repropor conhecimentos sobre e para a área da dança, Você ainda quer lutar comigo? respeitosamente articula um diálogo com as possibilidades das materialidades. Cenicamente, traduz de forma coerente os desejos e as intuições. Ao ponderar escolhas e decisões, sinaliza não apenas para si, enquanto processo, o que deve ou não ser continuado; mas sugere para a própria dança, enquanto uma área de conhecimento, o que é urgente e o que pode ser dispensável.

Rodrigo Monteiro

Rodrigo Monteiro é professor e pesquisador das Artes do Corpo. Interessa-se pela aliança entre a curadoria e a crítica, bem como pelos agenciamentos artísticos e culturais que podem emergir do encontro desses campos. Ao longo de sua formação acadêmica e de sua trajetória profissional, teve contato com referências e experiências artísticas que o guiaram para os estudos teóricos sobre o corpo, as ciências cognitivas, a semiótica e a filosofia política. Com isso, as Artes do Corpo, como por exemplo a Dança e o Teatro, são vistas por ele à luz de uma ótica indisciplinar, que, ao propor conexões inabituais, convida o pensamento a se movimentar.

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